Entrevista conduzida por Daniel Medina

O ano de 2011 foi auspicioso para si, pois recebeu várias distinções.

J.L.F. - Efectivamente no ano de 2011 conquistamos o importante galardão “Grande Prémio Sonangol de Literatura”, num concurso aberto a autores dos cinco PALOPs e ao qual foram apresentados cinquenta e um originais, tendo o respectivo júri atribuído o referido prémio por unanimidade. Acontece que, também, fomos agraciados com a dignidade de “Cidadão Honorário da Cidade Velha”, algo que nos honra sobremaneira visto se tratar de uma das urbes Património da Humanidade e o Município da Ribeira Brava – S. Nicolau concedeu-nos o “Diploma de Reconhecimento”, distinção que nos gratificou deveras, por ser o nosso berço natal.

Acresce que este conjunto de acontecimentos coincidiu justamente com o 35º aniversário da nossa primeira publicação (Apontamentos Etnográficos – 1976), constituindo quase que uma celebração não programada da efeméride.  

Gostaríamos de saber como se processou a sua iniciação na escrita?

 J.L.F. - Possuíamos na nossa casa, em S. Nicolau, uma biblioteca razoavelmente apetrechada e nesse recheio tivemos o privilégio de uma iniciação à leitura sabiamente orientada pelo nosso Pai, que também nos inoculou o “vírus” da informação/conhecimento.

Complementarmente citaremos os “serões culturais” (se assim se lhes pode chamar), pois regularmente e em dias da semana pré-estabelecidos, aconteciam reuniões depois do jantar, nas quais participavam todos os membros da família, com leituras colectivas, debates de temas mais em voga, comentários a acontecimentos de relevo, enfim um rico alfobre em que germinava a “cultura geral” com que ele nos apetrechou.

Porém, no que concerne ao inicio da escrita propriamente dita, incentivou-nos a elaborar breves descrições do quotidiano e habituou-nos a compor relatos de eventos locais, que depois corrigia indicando como redigir correctamente. Uma grande escola!

Neste entrecho cultural se preparou o fermento que, levedando, fez com que, ao longo de três décadas e meia, nos disponibilizássemos totalmente para a produção e publicação de um conjunto de trabalhos no quadro da nossa especialidade, preparados com a possível isenção e independência intelectual.

Daí que numa retrospectiva não nos sintamos perseguidos pela nostalgia, nem nos penitenciamos pela opção seguida, porque temos feito tudo isso com enorme gosto e empenhamento.

Entrementes, nesse percurso vimos debruçando primordialmente sobre o gratificante estudo, valorização e divulgação da nossa sociocultura, tanto através da publicação de livros e artigos em revistas e jornais, como também leccionando nos diversos graus de ensino ou proferindo palestras e conferências e, ainda, participando em encontros, colóquios e congressos num significativo número de países, abordando sempre a temática cabo-verdiana.

Pode descrever-nos em breves traços o seu percurso académico?

J.L.F.Terminada a antiga instrução primária na nossa ilha natal, fizemos os estudos liceais no Liceu Gil Eanes, no Mindelo, com algumas interrupções, na medida em que iniciamos muito cedo a nossa actividade docente (como “Professor de Posto Escolar”, a escala mais baixa do sistema de ensino na altura).

Como sempre fomos pessoa de muita inquietude pela necessidade do conhecimento na busca do saber, depois abalançamos continuar os estudos em Portugal, começando pela Escola Agrícola de Santarém, onde dispensamos sempre a todos os exames e temos a honra de ter sido o único estudante naquele estabelecimento de ensino que alcançou a nota de vinte valores na sua tese final.

Porém, assente na disponibilidade e abertura ao mundo do saber, resolvemos prosseguir um rumo deveras estimulante, ou seja a complementaridade do conhecimento adquirindo formatura em áreas que nos permitissem melhor estudar a sociedade cabo-verdiana. Cometimento assaz exigente, pois houve que arranjar um emprego e tentar conciliar simultaneamente trabalho, aulas e estudo, o que reconhecemos ter sido bastante árduo até a estabilização programática das actividades e conseguir superar dificuldades. Sublinhe-se, a propósito, que jamais auferimos qualquer subsídio ou bolsa de estudo por parte de seja que entidade for.

Mais tarde entramos para a Faculdade Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, onde leccionamos cerca de vinte anos percorrendo toda a carreira universitária com algum êxito, visto termos conseguido formação especializada e a experiência que colocamos ao serviço de Cabo Verde, através nos nossos trabalhos e actuações correlacionadas.

Acontece que nunca planeamos a vida com régua e esquadro, do mesmo modo como podemos afirmar jamais termos sido afectados pelo calculismo, motivo porque bastas vezes fomos prejudicados no ritmo de progressão na carreira profissional.

Reconhecemos, contudo, que o percurso não foi fácil, mas “subido a pulso” e sempre encarado positiva e orgulhosamente, porque quando uma coisa custa muito damos-lhe mais valor.

 E no que toca à sua actividade como investigador?

J.L.F. - O bichinho da pesquisa/conhecimento que nos passara o nosso Pai, encontrou o ambiente para se desenvolver através dos nossos contactos no meio académico com docentes eméritos e reconhecidos investigadores.

Nesse “caldo cultural” brotou o gérmen que trazíamos dos tais “serões em família” e se incrementou ao tentarmos debruçar sobre a nossa terra e sua gente, vivências, saberes, usos, costumes e tradições, baseando-nos na nossa formação antropológica e áreas complementares.

Entretanto tivemos o privilégio de cruzar com António Carreira, disso resultando uma grande amizade que perdurou até ele falecer. Introduziu-nos no universo da pesquisa arquivista, que aliada às bases académicas nos possibilitou a feitura dos trabalhos que modestamente vimos dando à estampa.

Daí diligenciarmos sempre por apreender o que de mais estimulante e criativo encontrámos nessa trajectória, diligenciando articular a coerência científica com a ousadia em termos de investigação, baseando-nos na convicção que a meta se conquista na dignidade inovadora e consciente.

Reporte-se que nos primeiros tempos interessávamo-nos igualmente por tudo quanto se relacionasse com as diversas culturas. Mais tarde apercebemo-nos que a dispersão não permite o aprofundamento das questões, pois o afunilamento das possibilidades obriga a seleccionar campos de especialidades.

Deste modo e a título exemplificativo, apesar de sermos um leitor quase que compulsivo, constatamos já não termos tempo, no contexto do humanamente possível, para ler todos os livros que possuímos, nem reler todos os que desejaríamos. Quanto a estes vemo-nos, por vezes, obrigados a eles regressar face à oportunidade de certos encadeamentos analíticos.

No âmbito interpretativo optamos pela interdisciplinaridade e depois direccionamos a nossa caminhada para a multidisciplinaridade, o que alargou o universo das interligações dos nossos interesses no âmbito da investigação.

Trilhando esta senda, decidimos pela via da especificidade centrada nos suportes estruturadores da nossa cultura miscigénica, no interior da qual está a confluência dos traços constitutivos de uma Identidade que irmana o Cultural com o Nacional.

Por isso a nossa investigação encontra-se, essencialmente, marcada pela complementaridade entre a docência e a pesquisa, continuadamente desenvolvida no contexto de um universo referencial – Cabo Verde.       

Como resultado já vai em quase duas dezenas e meia de títulos

 J.L.F. – Alertamos para o facto de o nosso primeiro livro “Apontamentos Etnográficos”, publicado no recuado ano de 1976, tratar-se de uma ousadia conduzida pela inexperiência de um estudante a quem faltava a necessária maturidade. Felizmente a obra foi bem aceite e se esgotou há bastantes anos, ao ponto de nos terem proposto por várias vezes a sua reedição. Porém, com conhecimentos posteriormente adquiridos e o acesso a mais informações sobre o tema, só tal aceitaríamos depois da imprescindível actualização, que vem sendo preterida em função de outras prioridades.

Por conseguinte, neste labor de pesquisa e escrita das obras que vimos divulgando com o intuito de partilha, temos a noção que não nos foi possível produzir o quanto desejaríamos, face à diversidade e riqueza do universo cultural cabo-verdiano. Outrossim, embora absorvente e procurarmos dar o nosso melhor, fruímos a plena consciência que as nossas capacidades são limitadas. 

No entanto, ao longo deste tempo de investigação, ensino e divulgação, actividades a que dedicamos todo o empenho e responsabilidade, procuramos regular a nossa conduta pelo apanágio que aconselha a humildade característica do saber/conhecimento.

Asseguramos, ainda, que nunca nos preocupamos com escrever textos transcendentes nem enveredamos por discursos burilados, mas antes cultivamos a idoneidade de jamais seguir acriticamente dogmas, visto  estarmos cônscios dos objectivos em prol da nossa cultura e seus sustentáculos.

Com deficiências, é certo, vimos tentando dar o nosso melhor, partilhando as nossas escassas potencialidades criativas e no âmbito da investigação centrada primordialmente na temática cabo-verdiana.

Dividiu-se intelectualmente entre Cabo Verde e Portugal. Como é essa convivência?

J.L.F. - Sobre este aspecto gostaríamos de dizer que quando viajamos para Portugal tínhamos a nossa personalidade já amoldada e, como tal, um forte apego à Terra-Mãe. Deste jeito, sempre que possível regressávamos ao local onde ficou o umbigo enterrado para retemperar a nossa Identidade Cultural.

Por isso encaramos este balancear, no vaivém entre Portugal e Cabo Verde, numa óptica da complementaridade, na medida em que possibilitou-nos formação académica e aquisição da experiência com que nos apetrechamos para melhor estudar a nossa terra em diversas vertentes.

A comprovar o pendor caboverdianidade está o facto de na nossa bibliografia apenas constarem três títulos que de se desviaram dessa temática: Introdução à Antropologia Cultural (em co-autoria com dois docentes e que já vai em nove edições), Agrupamentos de Folclore - Ontem e Hoje (2004) e A Cultura Popular no Estado Novo (2010).

É conhecido pela sua frontalidade. Como tem gerido este comportamento? Vantagens e inconvenientes.

J.L.F. - Julgamos estar sempre subjacente que, na base desse modo de agir, se acha a intenção/prevenção, que a coerência seja uma preocupação dominante, conduzida como vontade de ser franca a retórica da realidade/imparcialidade, estilo em que apostamos sem cair nos imediatismos, nem no trajecto da banalização.

Acresce que, igualmente, em intervenções e pronunciamentos públicos, nossos comentários são frontais e produzidos com o intuito de contribuir para a melhor elucidação dos temas abordados. Daí o nosso propósito pautar apenas pela colaboração sustentada nos imperativos éticos e de cidadania, procurando não fulanizar os assuntos, mas tão-somente alertar a sociedade em geral e os responsáveis em particular.

Julgamos ter tido o cuidado de não agredir nem melindrar pessoas ou entidades, visto a nossa motivação primordial ser o interesse público, não nos deixando, por isso, desviar do essencial nem resvalar para o logro de interesses instalados, que utilizam sistematicamente estratégias ambíguas/nebulosas em defesa de determinadas atitudes/situações, servindo-se de justificações frágeis e despropositadas ou desferindo virulentos ataques com tiradas de bases falaciosas.

Constatamos, entretanto, termos sido por vezes estorvo para oportunismos ou rotinas e algumas vezes incompreendidos por parte de decisores, mas tal nunca fará esmorecer a nossa linha de conduta suportada pela neutralidade analítica.

Talvez por isso, alguns dos nossos textos se apresentem um tanto incómodos, convertendo o Autor num elemento de certo modo inconveniente, ao desassossegar elementos abafados pela propensão da indiferença cultural ou anestesiados pela hipocrisia que anula o sentido crítico, tornando-os indivíduos sem capacidade de manifestar uma réstia de progresso mental com vista a acompanhar a dinâmica da “aldeia global”, mas que se manifestam alardeando-se em hipotéticos eruditos e não olham a meios para singrar, desferindo de passagem solertes e despeitadas facadas a quem “imaginariamente lhe faça sombra

Embora não seja nada fácil enfrentar tamanha obtusidade, derivada normalmente da falta de necessária compleição no que concerne ao papel do investigador, diligenciaremos estar sempre atentos na defesa da sociocultura cabo-verdiana. Neste sentido permita-se-nos recordar Edward Said(*) ao afirmar: “O desassossego é o movimento, a condição de estar sempre irrequieto e causar inquietação nos outros”, normalmente “mentes que nunca viajaram para além do confortável”.

 O bom conselho recomenda que, perante insidiosos questionamentos, se encare tais tratadistas com um irónico sorriso de compaixão, face aos seus malabarismos pseudo-intelectuais, mas totalmente descabidos por falta de argumentação.

Por norma não utilizamos trocadilhos, os sundbytes como agora se diz, nem alinhamos na mediocridade das conhecidas “bocas de kriol”. Pelo contrário, preferimos ser discretos, não nos importando ficar atrás do palco, enquanto outros apenas “representam”, bastas vezes sem criatividade…

Anunciou que com o valor do “Grande Prémio Sonangol de Literatura” vai criar a “Fundação João Lopes”

J.L.F. – Confirmamos que foi deveras gratificante para nós a atribuição deste Prémio e, melhor ainda, por unanimidade do júri. Ocorre que por considerarmos salutar o altruísmo social e elevada abnegação cultural que presidiram à criação do “Grande Prémio Sonangol de Literatura”, continuando nessa mesma linha de actuação, optamos por utilizar o valor do prémio com que fomos galardoados para lançar as bases de uma Fundação tendo como patrono João Lopes.

Pretendemos desta forma honrar a memória do nosso Pai, elegendo-o tutelar de uma instituição de índole cultural aberta à fruição de todos os cabo-verdianos, na linha que sempre defendeu.

Para tanto a “Fundação João Lopes” propugna-se, em primeiro lugar servir a Cabo Verde, a partir das seguintes vias de actuação:

a)      Desenvolver acções de ordem social, cultural, científica, educativa, artística, e filantrópica.

b)      Incrementar a investigação e promover a divulgação das diversas vertentes do contexto sociocultural cabo-verdiano.

c)      Impulsionar uma dinâmica do conhecimento, valorização e promoção de Cabo Verde.

Contudo, ao instituirmos a “Fundação João Lopes”, temos plena consciência que a concretização desses objectivos só será possível com a cooperação de todos, principalmente dos nossos amigos e parceiros, pelo que contamos com a colaboração de todos, seja em qual for a área que se disponibilizem a participar.

Agora uma pergunta de foro pessoal. Como justifica a sua postura um tanto “reservada socialmente”?

 J.L.F. – O homem é um animal de hábitos. Talvez pelo facto de ao longo de décadas termos passado a maior parte do tempo um tanto isolados, dedicando-nos a leituras, fazendo pesquisas ou no exercício da escrita, que exigem alguma concentração, pelo que tal poderá ter exercido alguma influência, apesar de cultivarmos a abertura e o bom relacionamento com todo o tipo de pessoas, para além de nos adaptarmos perfeitamente a todos os ambientes ou patamares sociais.

Estamos convictos que quando se refugia a ler ou escrever ignorando o que nos cerca, perde-se a essência da realidade. Tanto mais, nos tempos que correm somos constantemente incentivados por um sem número de solicitações quase não sobrando tempo, mas numa atitude saudável, o bom senso aconselhara não nos alhearmos do nosso tecido sociocultural.

Certamente poderão verberar-nos algum “isolamento” ao seguirmos o verbo de António Carreira – “para fazer investigação há que escolher entre a vida social e a pesquisa” – preceito que pode relegar para a auto-reclusão social ou então remeter para uma pseudo-exclusão convocada pelos olhares de esguelha que vai nisso implicado.  

Por isso, temos sempre procurado modelar a nossa conduta pelo apanágio da humildade científica como postura característica do saber/conhecimento. Acresce que, também, nos preocupamos sobremaneira com a prática da cidadania responsável, pautada por uma intervenção construtiva e sempre visando a partilha.

Poderemos mesmo aceitar o “intelectual” com que alguns nos apodam, mas no conceito que aparece em Zola, ou seja alguém que intervêm na sociedade tendo em vista a justiça, o conhecimento e a cultura. Pelo menos são esses os propósitos por que sempre nos temos alumiado.

Conquanto sejamos detentores de uma paz interior, resultante da sageza tranquila que vem de a experiência vivida nos ter ensinado que devemos inocular todas as manhãs em nós mesmos “forças positivas” para inventarmos cada dia e tal nos proporcionar singular prazer e muita alegria, tal estado de espírito apenas se manifesta claramente no convívio com quem tenhamos bastante à vontade, por certo, devido à nossa natural timidez.

No decurso dos tempos qual o maior erro que cometeu?

 J.L.F. – Haverá alguém que nunca terá errado? Mas quanto aos erros cometidos, depois de superados não é bom conselho revisitar o que já está arrumado.

A terminar, quais são os seus próximos projectos?

 J.L.F. – Neste contexto foi recentemente colocado à disposição dos leitores o romance “Percursos & Destinos”, que foi a nossa primeira incursão nesse género literário.

Também fizemos no final de 2011 apresentações em Portugal do ensaio “A Cultura Tradicional no Estado Novo”, que resultou de uma pesquisa, com estudo de caso, em que damos a conhecer como o regime dirigido por Salazar se aproveitava sub-repticiamente de aspectos da cultura tradicional para a implantação e divulgação da sua política.

No âmbito de edições, está quase pronto para publicação um aprofundado estudo sobre as “Cerâmicas de Cabo Verde”, através do qual analisamos os diversos sistemas de trabalhar o barro nalgumas das ilhas e as transformações advindas da evolução nos centros oleiros do arquipélago.

Está igualmente a caminho do prelo mais uma tentativa-experiência, ou seja um livro infantil intitulado “O Gatinho Medroso”, cujo conteúdo se centra essencialmente em ilustrações de suporte ao texto, no sentido de melhor cumprir a sua função junto do respectivo público-alvo (incentivo à leitura por parte de crianças dos 6 – 8 anos). Igualmente com intuitos pedagógicos, optamos por deixar o final da estória em aberto, para que cada “pequeno leitor” a possa completar a seu gosto e imaginação.

Diríamos que, embora a nossa análise centralize-se primordialmente no ensaio, com esta obra completaremos uma trilogia no campo de ficção abarcando três escalões etários: Percursos & Destinos – adultos, Vamos Conhecer Cabo Verde – jovens, O Gatinho Medroso – crianças.

* -Edward Said, in Representações do Intelectual - Capítulo “Exílio Intelectual. Expatriados e Marginais”.                                                                                 

(Soca Magazine nº 1 – II Série, Praia, Agosto de 2012)