João Lopes Filho lança hoje obra sobre António Carreira
“António Carreira – Etnógrafo e Historiador” da autoria do antropólogo João Lopes Filho é uma das poucas monografias sobre o historiador cabo-verdiano falecido em 1988. A apresentação da obra estará, hoje, na Assembleia Nacional, estará a cargo de António Correia e Silva e Carlos Reis.
Como escreve o autor na introdução, livro que ora apresenta ao público praiense constitui uma sincera homenagem à vasta e importante obra, mas também ao historiador com quem teve o privilégio de colaborar durante largos anos.
Nos cinco capítulos das quase 300 páginas do livro, João Lopes Filho apresenta o homem e a sua extensa bibliografia que abarca estudos de etnografia, historiografia, língua cabo-verdiana, pareceres académicos e apoios de investigação.
Uma menção especial merece o capítuloOrientações e Estágios, pois como realça João Lopes Filho a vasta experiência na investigação histórica e etnográfica levou António Carreira a salientar a necessidade de “estimular os jovens e os próprios licenciados no sentido de levarem a efeito, para os seus trabalhos académicos, pesquisas nos vários domínios das Ciências Humanas e Sociais”.
O autor cita Félix Monteiro que recorda o incentivo dado por António Carreira a muitos investigadores cabo-verdianos: “Nos domínios da sua especialidade, não foram poucos os estudantes universitários (e não só) que, no seu gabinete de trabalho, consultaram livros, revistas e fichas sob a sua orientação, muitas vezes até com algum prejuízo para o rendimento dos aseus próprios trabalhos, alguns dos quais terão ficado por concluir”.
No livro ficamos a conhecer alguns estudantes que António Carreira acolheu no percurso da sua investigação, entre os quais Margarida Fragoso, Zelinda Cohen, Fernanda Marques e António Correia e Silva.
O actual ministro do Ensino Superior foi, aliás, o seu último estagiário. João Lopes Filho escreve que António Carreira, perante as reconhecidas qualidades do seu discípulo, “fechou o ciclo de orientações de forma gratificante e com chave de ouro”.
“António Carreira – Etnógrafo e Historiador” tem o selo da Fundação João Lopes.
Expresso das Ilhas - Cultura, Sexta-feira, 26 junho 2015
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António Carreira - Etnógrafo e Historiador é o mais recente livro do investigador João Lopes Filho
O acto de lançamento acontece no Palácio da Assembleia Nacional e tem como apresentadores Carlos Reis e António Correia e Silva.
De acordo com João Lopes a obra não se trata de uma focalização biográfica, mas sim uma focalização sobre a obra de um dos mais argutos historiadores de Cabo Verde, e que, em seu entender tão bem soube estudar os aspectos sociológicos do pais.
João Lopes Filho lança obra sobre o perfil de António Carreira um dos mais renomados historiadores de Cabo Verde.
MCSA – RCV, 24 Junho 2015
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Jornal A VOZ - Entrevista a João Lopes Filho
1 – Esta obra, para além de ser uma reconhecida homenagem àquele que foi, praticamente, o mentor e precursor da história de Cabo Verde, é, fundamentalmente, um trabalho de fôlego para se conhecer este ímpar historiador e investigador, estudioso da história e cultura de Cabo Verde?
JLF – Para além destas alusões, trata-se, acima de tudo, da nossa modesta homenagem àquele que foi para nós um verdadeiro Mestre ao introduzir-nos em aprofundadas pesquisas de arquivos, campo em que era um verdadeiro perito e de cujas investigações resultaram os seus livros que constituem um expressivo contributo para a construção da História de Cabo Verde, visto ter sido o mais produtivo dos historiadores contemporâneos.
Tivemos, portanto, a honra de trabalhar com ele durante bastante tempo e de assim ir desfrutando dos seus ensinamentos, principalmente no campo prático, na medida em que serviram para complementar a nossa formação académica (que considerávamos bastante teórica).
2 – Segundo o livro, Cabo Verde esteve na iminência de perder um grande trabalho de investigação e um excelente espólio, na medida em que o investigador esteve em vias de, conforme o próprio “destruir toda a documentação acumulada, visto que os apoios são dados aos que nada produzem: aos inúteis, protegidos pela rede de compadrio reinante”.
JLF – Acontece que nos últimos tempos da vida, António Carreira sentia-se verdadeiramente decepcionado devido a ter dedicado significativa parte da sua existência à investigação arquivística sobre a temática cabo-verdiana, disso resultando um importante acervo de grande interesse para a nossa História e nos quais também baseou as sua publicações.
No entanto, além dos que publicou tinha já preparados outros livros e para as respectivas edições solicitou patrocínios a várias entidades e instituições públicas e privadas sem obter quaisquer apoios. Assim, estando bastante adoentado, ao constatar que os seus familiares mais próximos não se mostravam interessados em dar sequência ao seu trabalho e sem alguém a quem confiar todo aquele material, aconteciam-lhe momentos de desilusão em que irritado se dispunha a destruir aquele rico espólio histórico, tendo mesmo chagado a pensar fazer um “auto de fé” com tudo aquilo, o que a acontecer seria uma enorme perda para quantos se interessam pelas memórias de Cabo Verde.
3 – Pelo que consta no livro, este homem de fibra e de carácter, incansável e notável investigador, foi muito injustiçado, devido ao episódio de Pidgiguiti (ainda bem que superado a tempo), e por não ter sido feito um melhor trabalho de divulgação das suas obras e do seu valor. Este livro vem suprir esta lacuna, fazendo justiça a um percurso marcado por muita luta e intempéries?
JLF – Como poderá constatar pelo conteúdo do livro, o nosso despretensioso trabalho se centrou nas vertentes Etnografia e Historiografia. Convém realçar que António Carreira vem sendo referido apenas como Historiador, visto muitos desconhecerem o seu papel como Etnógrafo. Contudo, foi ele quem nas sucessivas campanhas de recolhas em Angola, Cabo Verde, ex-Guiné Portuguesa e em Moçambique, colectou todo o representativo acerco do Museu de Enologia em Lisboa, onde trabalhou como renomado antropólogo Jorge Dias.
Portanto, debruçamos apenas sobre os aspectos socioculturais, na medida em que não fez parte dos nossos propósitos analisar aspectos da sua vida pessoal ou política, tanto mais que Carreira não era pessoa com predisposição para a dar a conhecer aquilo que considerava muito particulares. Todavia nos confidenciou que relativamente ao episódio de Pidgiguiti nada lhe pesava na sua consciência, certamente esse o motivo porque (como afirma) porque o assunto tenha sido superado pelo tempo. Mas não será de descartar a hipótese de aquele episódio ter influenciado na pouca disponibilidade para a concessão de apoios aos seus interessantes projectos de publicação.
4 – Para além de ter contribuído para o alicerçar da história e da realidade sociocultural e económica das ilhas de Cabo Verde, pode-se dizer, também, que Carreira foi o precursor do estudo e investigação no domínio da tradição oral e da língua cabo-verdiana?
JLF – Apesar de não ser linguista (aliás foi autodidacta em quase todos os campos de estudo em que trabalhou), também se preocupou com a língua cabo-verdiana. Recorde-se que além do nosso crioulo, Carreira falava fluentemente o jalofo, o mandiga e o papel, situação de certo modo privilegiada para a possível análise das influências africanas na língua cabo-verdiana. Mas constata-se que nunca é mencionado pelos nossos actuais estudiosos dessa área, apesar de supormos ser de algum interesse o seu contributo, ainda que em análises académicas possa ser aceite ou contestado com bases fundamentadas.
5 – Depois deste trabalho, que lhe possibilitou conhecer, quase que ao pormenor, a vida desta invulgar figura da cultura cabo-verdiana, bem como o seu processo e metodologia de trabalho, a sua maneira de estar e ver o mundo, até a sua psique, qual a visão que poderia compartilhar aqui deste homem, que certamente o terá marcado, e do seu contributo a Cabo Verde?
JLF – Pergunta deveras difícil devido à estatura intelectual e moral do Homem António Carreira. Supomos que relativamente ao seu labor intelectual as suas obras falam por si. Como bem salientou acima, era “homem de fibra e de carácter, incansável e notável investigador”, mas também pessoa que preservava os valores de antanho, como o respeito pelos outros, a honra à palavra dada e totalmente avesso a todo o tipo de amiguismos, compadrios, cunhas e nepotismos. Perante estas situações não se coibia de soltar palavrões, deixando vir ao de cima a agressividade com encarava quantos se deixassem enrolar nesses oportunismos tão em voga. Constituiu para nós um exemplo raro nos tempos que correm.
Claro que ninguém é perfeito, mas sopesando virtudes e defeitos, são de longe as vantagens daquelas, tanto assim que apesar da sua afabilidade de trato, era bem conhecida a sua franca rudeza na maneira de expressar, pelo que, a este propósito, não resistimos a transcrever esta passagem do testemunho de uma sua estagiária, Fernanda Marques: “Debaixo da máscara agressiva que os genes e a vida tinham colocado ao Mestre, havia um homem de extrema sensibilidade que eu recordo com saudade plena de carinho”.
6 – António Carreira, em determinado passo das suas epístolas diz que “Os dirigentes destas instituições eram, em regra, falhos de imaginação – e ainda menos de compreensão – para avaliar do real alcance dos trabalhos que lhes apresentamos; e com a agravante de não pertencermos a nenhuma das confrarias e organizações de compadrios, que por aí proliferam, e onde os mandões, saídos da classe política, dão preferência absoluta aos seus apaniguados subservientes, ainda que comprovadamente ignorantes”. Este era um desabafo, que parece muito atual. Enfrenta estes problemas agora quando quer publicar ou tem mais facilidades?
JLF – Tirando alguns exageros, estamos plenamente de acordo com este desabafo do Carreira, que infelizmente se adapta perfeitamente á actual realidade cabo-verdiana. No entanto, há que ressalvar a existência uma maior abertura, principalmente por parte de instituições particulares, relativamente à concessão de patrocínios às publicações, de longe muito mais fáceis de obter do que no tempo de António Careira, pois acompanhei de perto vária das suas diligências neste sentido, na maior parte das vezes infrutíferas.
Neste campo constatam-se importantes progressos relativamente aos apoios para publicações, que infelizmente estão bem longe de atingir os níveis dos trabalhos de António Carreira, que desta forma teria produzido muito mais, privando-nos assim de muito do seu saber acumulado.
Entrevista conduzida por Dany Spínola
JORNAL A VOZ de 26 de Junho de 2015
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Jornal A SEMANA - Entrevista a João Lopes Filho
1 - Quem é António Carreira para a historiografia de Cabo Verde?
JLF – Supomos que se pode considerar haver um consenso geral de que António Carreira foi aquele que no período contemporâneo primeiramente se debruçou sobre pesquisas conducentes à construção da História de Cabo Verde.
Recorde-se que Carreira era conhecido como um verdadeiro “rato de bibliotecas”, tal o seu empenhamento em recolher aprofundadamente nos arquivos tudo quanto se relacionasse com Cabo Verde, tanto no país como no estrangeiro.
Deste modo colectou um interessante acervo documental com o qual elaborou bastantes livros e artigos, mas infelizmente, para os estudiosos, na última fase da sua vida não conseguiu patrocínios para poder publicar muitos dos seus trabalhos, levando a que muito daquele material levasse sumiço. Uma grande perda, pois viriam enriquecer a bibliografia cabo-verdiana nesta área específica.
2. Muito se tem dito acerca de António Carreira. O que traz de novo o seu livro sobre o historiador e etnógrafo?
JLF – Pelo seu meritório trabalho em prol da historiografia cabo-verdiana, realmente António Careira merece todo o reconhecimento por parte de quantos se interessam pelo nosso passado, visto ser deveras importante o seu contributo.
Todavia, gostaria de realçar que este nosso despretensioso trabalho não teve como objectivo colmatar possíveis lacunas acerca do “Homem e da Obra”, mas apenas e simplesmente um singelo preito de homenagem ao Mestre com quem trabalhamos durante bastante tempo e de quem colhemos judiciosos ensinamentos que nos têm sido muito úteis pela vida fora.
No entanto, constata-se que Carreira vem sendo encarado apenas na sua vertente historiográfica e sem quaisquer referências à sua actividade etnográfica. Porém, foi ele quem, através de diversas campanhas levadas a cabo em Angola, Cabo Verde, ex- Guiné Portuguesa e Moçambique, colectou todo o material que constitui o rico acervo do Museu de Etnologia em Portugal, onde trabalhou e foi colaborador do conhecido antropólogo Jorge Dias. Aliás foi este quem o orientou nas referidas pesquisas de terreno, bem como o incentivou a elaborar trabalhos etnográficos, como a sua conhecida “Panaria Cabo-verdiano – Guineense”.
Assim, poderemos talvez considerar o aspecto “Etnografia” como uma modesta achega para o melhor conhecimento deste estudioso cabo-verdiano.
3. Que métodos de trabalho Antonio Carreira usou e que até hoje são usados pelos historiadores cabo-verdianos?
JLF – Carreira foi um autodidacta em diferentes campos de estudo. Contudo, no âmbito do trabalho de campo teve a orientação metodológica do Jorge Dias. Mas no que concerne à investigação bibliográfica tratou-se de uma investimento muito pessoal, ao qual se dedicou com empenho e dedicação pesquisando afincadamente elementos relacionados com a historiografia cabo-verdiana.
Portanto, trabalhou inicialmente a partir da própria intuição, acabando por adquirir uma invejável experiência, pois conhecia ao pormenor os arquivos onde se encontram documentos relacionados com Cabo Verde.
Com esse material preparou os seus livros, que são riquíssimos repositórios de importantes informações. No entanto, pecam por alguma falta de análise interpretativa à luz das metodologias mais actualizadas.
Partindo deste pressuposto, compreende-se porque certamente os actuais historiadores cabo-verdianos terão ultrapassado os “métodos de trabalho” usados por António Carreira, tendo presente que acompanham a dinâmica da investigação científica.
4. A quem é destinado este livro: alunos e professores universitários, investigadores, historiadores?
JLF - Os nossos tralhos resultam sempre de observações e interpretações muito pessoais dos quotidianos vistos a partir de um olhar antropológico. Quando consideramos que os mesmos já possuem um mínimo de condições de serem partilhados, resolvemos publicá-los. Por isso não nos preocupamos com um público-alvo específico, tanto mais que tentamos, na medida do possível, expor as nossas mensagens da forma que julgamos ser a mais acessível por todos os interessados.
Por tais motivos, este nosso estudo não se destina a nenhum grupo específico, e apenas esperamos que possa ser de alguma utilidade a diversificadas camadas de leitores.
5. Este é o primeiro livro dedicado inteiramente a ele? Se não, quais foram editados antes?
JLF – Em Cabo Verde não existe a tradição de se fazerem muitos estudos de carácter biográficos ou algo semelhante. Por isso não temos conhecimento de outros trabalhos debruçando sobre a “Vida e Obra de António Carreira”. Desconhecemos, igualmente, se tal já aconteceu no estrangeiro.
Acresce que, como referido anteriormente, não se trata de uma biografia do Carreira, pois este estudo está longe de atingir tal estatuto. Não foram estes os nossos propósitos, porque somente nos propusemos tentar um modesto tributo de gratidão, na medida em que tivemos o privilégio de trabalhar durante bastante tempo com ele, situação que contribuiu para solidificar uma verdadeira amizade.
Entrevista conduzida por Teresa Sofia Lopes
JORNAL A SEMANA de 26 de Junho de 2015
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EVOCAÇÃO DE ANTÓNIO CARREIRA
(APRESENTAÇÃO PÚBLICA DO LIVRO “ANTÓNIO CARREIRA – ETNÓGRAFO E HISTORIADOR” DE JOÃO LOPES FILHO)
Muito me apraz felicitar a organização deste encontro na pessoa do senhor Professor Doutor João Lopes Filho e agradecer o convite honroso para dizer umas palavras numa assembleia tão qualificada como esta.
Devo começar por dizer que considero uma feliz coincidência a decisão de evocar António Barbosa Carreira, a propósito do aniversário da independência de Cabo Verde porque a sua contribuição para o conhecimento da nossa história comum inscreve-se entre aquelas de maior importância e a sua obra demonstra que a quantidade pode ser conciliada com a qualidade, quando a competência, a perseverança e a capacidade de trabalho também estão presentes.
O simples exercício de lembrar António Carreira faz-me confrontar com palavras como «trabalho», «frontalidade» e «integridade», cujo significado tinham, a meu ver, especial significado para a sua personalidade.
Relembro o homenageado a passar «uma descompostura «aos calaceiros» que querem passar por investigadores sem se darem ao trabalho de «ir às fontes», com todas as possibilidades de perversões subsequentes, e lembrando amiúde a Professora Virgínia Rau, por quem tinha uma particular admiração, devido ao comprovado rigor desta grande investigadora. Aparentemente, e para muitos, tinha um feitio e trato difícil, que já em 1982, considerava que chegou à «saturação. Incompreendido e sem apoios de ninguém não merece a pena lutar» e que «há preferência nítida pelos louvaminheiros. Deixe-os lá. Só os inúteis é que têm alguma chance nestas sociedades onde a trampa do português se amontuou.»
Rudemente franco, recordo ainda este foguense de gema a vociferar «Não sei porque me chamam historiador. É só para engraixar mas, também não sei porque me engraixam porque nada tenho para dar. E eles também sabem isso. Sei muito bem que não passo de um focinhador de arquivos. Eles que focinhem também». Ou ainda, em reação à ideia apresentada pelo seu amigo Arnaldo França, em 1978, ao transmitir o que era ainda a intenção de vir a homenageá-lo, escreveu «deixem-me rir com certo gosto devido ao seu dito: dos «livros, dos compêndios e das placas toponímicas» com o meu nome, antecedido de um cognome (como o que deram aos falecidos reis de Portugal desde o Gordo ao Cruel) de «historiador cabo-verdiano». Deixe-se de lérias. Lembre-se que passamos meteoricamente por este vale de lágrimas e depois de morto ninguém mais se ocupa de nós. E ainda bem. Bastam as ingratidões e depois os insultos com que nos mimoseiam – com razão e sem ela».
Conheceu «o desânimo e a falta de vontade de trabalhar» como nos dá conta em carta dirigida a Félix Monteiro em Outubro de 87, por razões que não se limitaram à falta de saúde. Já em 1985 se auto-definia como «um miserável funcionário aposentado, sem apoios oficiais conseguiu dar a conhecer ao público alguns importantes aspetos culturais (históricos, sociais e económicos), muitos deles inéditos, relacionados com as ex-colónias de Cabo Verde e da Guiné, suplantando a propagandeada cooperação de si dispendiosa e ineficiente com os chamados países lusófonos». No texto intitulado «À Guisa de Testamento», datado de Outubro/Dezembro de 1985, começa «a cogitar no destino a dar ao arquivo pessoal, arquivado com elementos recolhidos nas pesquisas arquivísticas levadas a efeito em Lisboa e em Cabo Verde em cerca de 26 anos» e admite a hipótese de iniciar o processo que João Lopes Filho haveria de chamar «uma espécie de “auto-de-fé” que, felizmente, nunca foi concretizado.
A personalidade de António Barbosa Carreira era muito marcada pela frontalidade. Não poupava a ninguém, a sua pessoa e amigos incluídos. Gostava de dizer «que se orgulhava de ser «pobre, mas honrado em toda a acepção do vocábulo e digno quanto se pode ser digno numa sociedade em que haja um mínimo de respeito pelas pessoas, assim quero morrer».
A firmeza de caracter de António Carreira era um factor incómodo para o investigador, sobretudo, para uma eventual carreira mas, simultâneamente, servia para a marca que o Homem deixava em tudo quanto tocava.
Surpreende-me, ainda hoje, em António Carreira, o exercício moral de conseguir ter a cabeça bem levantada, sem no entanto, deixar empinar o nariz. Teve que aprender a encaixar os insultos, lidar com eles e prosseguir a íngreme caminhada da vida.
Os seus poucos amigos em Cabo Verde testemunham a reduzida ligação física com a sua terra natal, de onde saiu com cerca de dez/onze anos. Dos seus oitenta e dois anos de vida, quarenta e três foram vividos na Guiné, onde fez a carreira administrativa. Reformou-se em 1954, e passou a exercer o cargo de gerente da Casa Gouveia, representante da Companhia União Fabril (CUF) que comercializava os principais produtos de exportação para Portugal. As teias da agitação política em Bissau não facilitaram a vida ao gerente comercial. A greve de estivadores no cais de Pidjiguiti, em Bissau, a 3 de Agosto de 1959, que haveria de ter como consequência imediata a deterioração dos produtos agrícolas, obrigou o gerente comercial a informar a polícia dos acontecimentos.
Na versão pessoal de António Carreira, a sua responsabilidade em relação ao que viria a ser «o massacre de Pidjiguiti» terminou com esta informação que, segundo ele, não podia ter deixado de fazer. Por razões que nos escapam, esta versão não é a mesma da direcção de então do PAIGC que o acusou de ter sido o principal responsável do massacre. Em carta a Félix Monteiro, em 1978, ainda se sentia coibido de realizar visitas a Cabo Verde, por não desejar que «pudesse ter qualquer influência nas suas (deles) relações com os dirigentes da Guiné, para os quais sou «persona non grata» pelos acontecimentos do Pidjiguiti em 1959. Refere ainda, conforme no-lo revela este precioso livro de João Lopes Filho que não podia «ser insensível de todo aos insultos que pelo menos anualmente me dirigem» nem se poder «arriscar a ser vaiado ou insultado por qualquer agrupamento de gaiatos que alguém possa querer organizar encontrando-me aí».
Em carta que me foi dirigida a 07 de Dezembro de 1978, citada neste livro, António Carreira reconhecia que «os Governantes da Guiné têm-se manifestado hostis à minha pessoa por razões ligadas aos acontecimentos do Pidjiguiti em 1959, endossando-me a responsabilidade da ocorrência. Ora, eu não me sinto com nenhuma responsabilidade directa no caso (...) o que para mim se apresenta curioso é que nunca tivessem apontado os autores materiais do caso: o Comandante Militar, o Comandante da Polícia e os restantes agentes do governo de então, na altura em que eu era um simples empregado comercial».
Pelo seu percurso de vida, pelo amor que demonstrou por estas ilhas e, mesmo pela Guiné, através da escrita, pela selecção e vastidão temática, somos levados a optar pela inocência de António Carreira em relação à grave acusação que lhe foi feita.
Da minha parte, a imagem que guardo do Autor de «Cabo Verde – Formação e extinção de uma sociedade escravocrata» aproxima-se mais da que ele próprio faz da sua pessoa quando escreveu: «quero ser o que sou e não o que a má língua queira inventar».
Em Cabo Verde, creio poder afirmar que se preferiu avaliar o Homem a partir da sua extensa e profunda obra consagrada essencialmente a Cabo Verde e à Guiné. Como não ser sensível ao leque temático investigado e tratado por Carreira: da panaria de Cabo Verde e da Guiné, ao comércio de escravos e à sociedade escravocrata, passando pela Companhia de Grão Pará e Maranhão, pela língua cabo-verdiana, as secas e as estatísticas das mortes provocadas pela fome, e as migarções?
Um consenso relativamente importante foi construído em relação ao seu trabalho, tentou-se fazer o melhor possível para o seu reconhecimento público mas, condicionalismos diversos não permitiram ir de um ou outro apoio editorial, da utilização da sua vasta experiência de investigador como orientador de estágios e do inventário do seu arquivo pessoal, ainda em vida do homenageado. É claro que se pode sempre perguntar, a par do reconhecimento da importância do Homem e da sua obra, se era possível fazer mais, nas condições então existentes.
O choque do seu passamento, ocorrido em Abril de 1988, depois de algum tempo de falta de saúde que não lhe permitiu manter o ritmo habitual de escrita, o que representou para ele a dupla aflição de chegar a admitir que não conseguiria terminar o último capítulo dos dois volumes sobre a «A Companhia de Grão-Pará e Maranhão», - registe-se, mais uma vez, a quase obcessão por «Cabo Verde e a Guiné – dizia que a sua morte levou à organização de manifestações de pesar e reconhecimento da sua importância. Em cerimónia presidida pelo Presidente da República Aristides Pereira, a Direcção Geral do Património Cultural organizou uma Mesa Redonda em sua homenagem, em 1990, por ocasião do segundo aniversário do seu passamento. O Presidente Mascarenhas Monteiro decidiu condecorá-lo, a título póstumo, com a Ordem do Vulcão, a 05 de Julho de 1994 e dois Ministros da Cultura – David Hopffer Almada e Ondina Ferreira – testemunharam a sua admiração e respeito, o primeiro por ocasião do seu falecimento e a segunda, quando da cerimónia de transladação dos seus restos mortais, para o cemitério de S. Filipe, em Maio de 1994, por desejo familiar. A sala «António Carreira» do Arquivo Histórico Nacional é hoje uma realidade mas, possívelmente, estará faltando algo mais para que se consiga dar vida e elevar o patamar do valor do seu espólio.
Desde a primeira hora, representada pela manifestação de interesse de António Carreira em colaborar com Cabo Verde, pude testemunhar o interesse do então Primeiro Ministro Pedro Pires pelo Homem e pelo investigador, o qual, ainda na primeira visita oficial realizada a Portugal, fez questão de visitar António Carreira em sua casa, assumindo a responsabilidade pelo início de um processo de colaboração fraterna que, incluia a orientação de estagiários em História de Cabo Verde e que se alargava ao aproveitamento do seu valioso arquivo pessoal. Registe-se que, infelizmente, nem todos os compromissos assumidos com António Carreira foram assumidos.
No momento de terminar, insisto na importância de se dar vida à importância do «Arquivo António Carreira», existente no Arquivo Histórico Nacional, com a criação de condições que possam permitir aos especialistas encontrar as didáticas mais apropriadas para a sua utilização e formulo votos para que António Barbosa Carreira, emigrante cabo-verdiano na Guiné, durante quarenta e três anos, possa ter a sua memória reabilitada, na base do respeito pela procura possível da verdade histórica, e da necessiadde de se fazer Justiça a um Homem íntegro e em homenagem à contribuição que também soube dar para o estudo da sociedade guineense, nomeadamente, no domínio da História e da Etnografia.
Manifesto a minha admiração e respeito pela sua obra, e inclino-me perante a sua memória
Agradeço a atençao e a presença de todos e um obrigado especial para o senhor Professor Doutor João Lopes Filho que nos brindou com este excelente livro e com a organisação desta evocação do grande cabo-verdiano que foi António Barbosa Carreira.
Cidade da Praia, 26 de Junho de 2015.
Carlos Nunes Fernandes dos Reis
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Apresentação da obra de João Lopes Filho
ANTÓNIO CARREIRA, ETNÓGRAFO E HISTORIADOR
(Edição da Fundação João Lopes, Praia, 2015, 290 páginas)
Quando João Lopes Filho me convidou para apresentar o trabalho, que agora chega até nós, António Carreira, Etnógrafo e Historiador, em jeito de homenagem àquela que é uma figura ímpar da historiografia cabo-verdiana, não podia haver hesitações da minha parte, por razões que já saberão.
Mas antes direi, em nota de leitura muito rápida, que se trata de uma de referência obrigatória, que passa a fazer parte das nossas bibliotecas e que, em boa hora se publica. Só a amizade e a proximidade entre o autor e António Carreira, para não falar de empatias outras, que transcendem o campo pessoal dos afectos e resvalam para a área da admiração pelo trabalho de um homem, com H maiúsculo, atrás do qual se esconde um cientista de superior envergadura, reconhecido, nacional e internacionalmente, não para glória própria, pois que a sua humildade científica era proverbial de todo.
O livro é denso e abrangente, já que praticamente todas as facetas de António Carreira emergem em força e profundidade. E a homenagem fixada, fica para posteridade, pela qualidade do conteúdo e importância dos diversos interlocutores ouvidos, dando preciosas informações e prestando as suas valiosas observações e juízos.
Ninguém, doravante, poderá dizer, sob pena de faltar à verdade, desconhecer Carreira e as suas características humanas e de trabalhador abnegado, dedicado, que sempre fez, sem esperar encomenda de ninguém, porque acreditava que o que fazia tinha a maior importância para um melhor entendimento do seu torrão. Isso é tanto mais de apreciar e louvar, porque, apesar da ausência física da sua terra natal, desde a mais tenra idade, foi sempre fiel às suas origens e sempre se sentiu cabo-verdiano.
Aliás, pode afirmar-se sem rebuço, que António Carreira protagonizou, ele próprio, o modelo do homem das nossas ilhas: viveu na diáspora; foi detentor de uma experiência de vida riquíssima; estava dividido entre a ausência e a presença, essa dicotomia que o poeta Jorge Barbosa tão bem soube espelhar na bela estrofe – “o desespero de querer ficar e ter que partir”; persistente na ligação à terra/mãe, como um barco longe do porto, mas com amarra forte e perpétua à sua história, às suas origens.
Enfim, Carreira, de forma sublimada, conseguiu superar a sua ausência pela qualidade e profundidade da obra deixada para a posteridade. Por isso vem marcando gerações inteiras que só têm de se orgulhar deste feito de história de Cabo Verde, que os relatos do futuro só podem dar a devida relevância, através do respeito dos seus patrícios e outros mais, admirando a sua dedicação à causa do conhecimento da realidade multifacetada, das queridas ilhas cabo-verdianas. Aliás, o trabalho, que agora se dá à estampa, demonstra, claramente, que o valor de António Carreira não se esgota nas fronteiras da própria História. Tem uma dimensão interdisciplinar, que muito contribuiu para o aprofundamento de conhecimentos em matéria da identidade cabo-verdiana. Uma opção metodológica desde sempre assumida, talvez por secreta influência do grande amigo, Vitorino Magalhães Godinho, o representante maior, em Portugal, da corrente da Écolle des Annales, que vê e escreve a História sob um ponto de vista globalizante.
Apesar disso e ainda assim, ocorre-nos alertar, que hoje, mais do que nunca, o país carece de programar, coordenar, desenvolver e sistematizar a pesquisa científica, se se quiser reforçar a sua identidade, como premissa base para consolidação da independência nacional tão duramente conquistada.
A história do arquipélago cabo-verdiano nos indica, que somos uma entidade criada do exterior e com o fim de servir o seu “criador”. Sobrevivemos no âmago das ilhas, contra ventos e marés, mas estávamos, estamos voltados para fora. E porque éramos conduzidos de longe, em função de interesses do poder estabelecido, porque a população local foi votada ao esquecimento, ao ostracismo, porque fomos vítimas de um sistema que só contribuiu, e largamente, para a nossa alienação, enquanto povo com identidade própria, mister se torna que continuemos a debruçar-nos sobre nós próprios, identificando-nos com as nossas verdadeiras raízes culturais, sem qualquer tipo de complexo. Ao cabo-verdiano urge conhecer e apropriar-se da sua história; precisamos valorizar os aspetos positivos da sua cultura, cimento da Nação que somos e esteio da unidade nacional; precisa erradicar a alienação, assumindo, por inteiro e sem rebuço a sua dimensão histórica e cultural, com as suas componentes de múltiplas origens.
Parabéns João Lopes Filho. Parabéns também à Fundação, cujo patrono é vosso pai, ele também um cientista social de alto coturno, sobre as coisas da realidade social e cultural de Cabo Verde. O labor que a Fundação João Lopes está a desenvolver, só honra António Carreira, precisamente por causa das suas características intrínsecas, aliás espalmadas nos seus Estatutos. Um bem haja ao João Lopes Filho, pela iniciativa da criação desta Instituição que, desde a primeira hora, se tem primado por desenvolver as suas actividades de forma séria e, sobretudo, de maneira consistente e profunda. O conhecimento de Cabo Verde e o conhecimento científico acerca do nosso país, só têm a ganhar com esse labor. Bem haja, mais uma vez!
O meu testemunho
Dito isso, como preâmbulo necessário e integrador, considerando o trabalho, que agora se apresenta ao público, sobre a grata figura de Carreira, na sua intervenção enquanto Etnólogo e na interpretação histórica de Cabo Verde e de outros espaços próximos no falar português, diríamos que dissertar sobre António Barbosa Carreira é, para mim, ao mesmo tempo, difícil e fácil.
Difícil, porque envergonhado por não ter até ainda saldado a promessa/dívida para com ele, ou seja, dedicar-me, integralmente, à pesquisa da História, área para a qual me deu, sempre, os maiores incentivos.
Fácil, porque, laços de grande amizade e de profundo afecto nos ligavam a este homem frontal, além de mais de reconhecidas qualidades humanas, de alguém da têmpera de Sá de Miranda, “de antes quebrar que volver”. E, igualmente, é simples e denso dizer que publicou, tão-somente, 35 títulos versando estudos históricos, sociais e económicos sobre Cabo Verde, onde praticamente todos os grandes vectores da nossa história foram abordados. Apenas a título indicativo, podemos referir, por exemplo, A Panaria..., As Companhias Pombalinas..., Migrações nas Ilhas de Cabo Verde, Estudos da Economia Cabo-verdiana, Secas e Fomes em Cabo Verde, A Guiné e Cabo Verde - sua unidade histórica e populacional, Cabo Verde, Formação e extinção de uma sociedade escravocrata, para só citar alguns dos mais expressivos, do meu ponto de vista.
E com referência a este último título, queria apenas abrir um pequeno parêntesis, para sublinhar que houve uma 3.ª edição desta obra, uma Edição Comemorativa do XXV Aniversário do Banco de Cabo Verde, publicada com a chancela do IPC. A referida publicação aconteceu no ano 2000, e eu próprio subscrevi a Nota a essa mesma 3.ª edição. Fechado o parêntesis, prossigamos, então.
Para além desses numeroso número de títulos, antes enunciado, Carreira deu ainda à estampa 11 livros e 44 opúsculos e artigos sobre a Guiné, Angola, Moçambique e Brasil.
Em pelo menos 23 casos, o autor do Livro, António Carreira, Etnógrafo e Historiador, dá-nos a conhecer, sistematicamente, a opinião de investigadores de reconhecida competência internacional das áreas historiográfica e etnológica, que avaliaram, com respeito e admiração, a extensa bibliografia do nosso Carreira.
Um verdadeiro e inconsciente pioneiro do que é hoje conhecido como a CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Um exemplo ainda à espera de ser seguido, em matéria de investigação científica na temática das Ciências Humanas e versando esse grupo descontínuo de países, mas uno por mor das suas similitudes, alicerçados no lastro de um passado histórico/cultural comuns.
Temos, como povo constituído em Nação um futuro a percorrer e um presente real.
As estacas que ora se constroem, laboriosamente trabalhadas, deverão assentar em bases sólidas, o mesmo é dizer, numa população consciente do que lhe legaram os seus tataravós.
Se as grilhetas da escravatura caíram e as estruturas jurídicas e social se refizeram, urge sarar as feridas das lembranças dos escravos sussurradas pelos ventos, pela terra. Elas perduram em nós. A instrução/educação, factores de avanço do homem como um todo, trará abertura às novas gerações para que, afastadas do espectro da fome, se debrucem nos papéis, livros, registos - e nos resgatem. Pela análise dos factos, à luz de uma dinâmica que não a nossa, se poderá, então, abrir a porta maior da Casa Grande e sermos cabo-verdianos.
Daniel A. Pereira
Lisboa, 25 de Setembro 2015