Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
“Podemos comprar o relógio mas não o tempo”
(Provérbio chinês)
O início de um novo ano pressupõe a noção de tempo e a respectiva contagem. No entanto, para além de serem diversos os conceitos de tempo, consoante as culturas, épocas e estádios de evolução técnico-científica, a sua enumeração passou por diferentes métodos e técnicas, como sejam o cômputo dos dias a partir do nascer ao pôr-do-sol, a sucessão de luas, de solstícios e de equinócios, aos anos com base em diferentes calendários, às horas, minutos e segundos, até se chegar ao relógio atómico.
O tempo transcorre em profundidade sob as conjunturas, o movimento e as rupturas na superfície de cada sociedade. Portanto, o conceito de tempo é inerente ao ser humano, visto todos sermos capazes de reconhecer e ordenar a ocorrência dos eventos percebidos pelos nossos sentidos. Daí que, “quando falamos do ser, pensamos em qualquer coisa fora do tempo. Mas a realização do ser é no tempo, não pode ser toda de uma vez e tem de que ser com todos os indivíduos que constituem a humanidade. A realização do ser humano faz-se na totalidade da vivência humana no tempo” [1].
Contudo, a ciência evidenciou bastas vezes que as nossas percepções são mestres em nos enganar. A consciência de tempo inferida a partir dessa concepção é estabelecida via processos psicossomáticos, onde diversas variáveis, algumas com origem puramente psicológica, tomam parte e, como tal, passíveis de erro.
Neste contexto, muitas pessoas já observaram em algum momento uma ilusão de óptica, da mesma forma que em determinada conjuntura houve a sensação de que em certas situações determinados eventos transcorreram de forma muito rápida ou, ainda, que noutras circunstâncias escoaram de forma bem lenta, mesmo que o relógio - aparelho especificamente construído para medir o tempo – demonstre o contrário.
Entretanto as mitologias e muitas tradições atribuem ao tempo a configuração de um ente devorador; a simbologia e as memórias colectivas inventam dispositivos no sentido de o imobilizar; os rituais funcionam como possíveis domesticadores; a tecnociência e a economia ensaiam infrutíferas desmistificações tentando reduzi-lo à impossível física; o poder político alia-se a ele, legitimando-se no seu passado, gerindo o seu presente e sobretudo perpetuando-se no seu futuro.
Daí que a evolução das sociedades humanas se encontre de certa maneira influenciada pelas respectivas formas de conceber o universo e as mesmas certamente afectaram a construção de definições acerca da natureza estabelecida no cunho religioso acerca da ideia de tempo, visível nos diversos calendários estabelecidos não apenas em função de eventos periódicos naturais (caso da translação da Terra que deu origem ao conceito de ano), como em função de eventos religiosos específicos de cada civilização…
A preocupação com a passagem do tempo ou a comunicação entre o tempo extinto e o tempo presente, pode de certa maneira ser anulada pelo imaginário ao tentar reconstituir ou recuperar quotidianos, imagens e pormenores, num reencontro com hipotéticas coreografias do antigamente, interpretação que ganha uma espécie de eternidade em “quadros” como se estivessem em cena e lhes confere um sentido de comunhão.
Acontece que nas sociedades ditas tradicionais, o tempo é reconhecido no seu mérito e no seu enigma; sendo acatados os efeitos da sua indocilidade; pois o tempo, dimensão presente em todas as formas de vida mas totalmente invisível, é tratado a partir da sabedoria dos anciãos, com “a ciência dos adivinhos” e o poder dos antepassados.
Naquelas sociedades o tempo dos homens é inseparável do tempo dos seres naturais, mundo único subordinado a uma mesma temporalidade. Não existem cortes entre o tempo passado e o tempo recente. O passado, nas coisas e nos homens, é fundador do presente; os ascendentes fundadores de qualquer comunidade estão presentes e animam o poder, vivificam os soberanos e inspiram a sabedoria dos “mais velhos”.
Todavia, no reino da passagem do tempo a transitoriedade é a locomotiva da história. Do crepúsculo dos séculos até a actualidade, enquanto o tempo se esvai entre dias/anos, traz-nos a ressonância da conjuntura contemporânea em registos do quotidiano, inventando um ”tempo genuíno”.
Entrementes, o tempo afasta-se de nós de maneira curiosa, visto permitir diferentes perspectivas de abordagem: Tempo tema filosófico; tempo da evolução e de extinção; tempo de espera que é longo; tempo no deserto que é vasto, tempo histórico, tempo memória, tempo passado, tempo presente, tempo de trabalho, tempo de lazer, enfim diversas formas de o caracterizar.
O passar do tempo, ignorado ou manipulado, mas dificilmente aniquilado, é garantia da continuidade temporal que rege as sociedades. Por isso, muitas vezes quando nos referimos ao passado, não é ou será em termos cronológicos, mas em relação a experiências e respostas acumuladas, às memórias, tradições, conhecimentos, ao armazém subconsciente de inúmeros pensamentos, sentimentos, influências e reacções. Acontece que sem este fundo (background), não nos é possível compreender a Realidade, porque a Realidade não pertence ao tempo: é intemporal.[2]
Assim, guardado no baú das nossas memórias, repousam ideais envoltos na concha dos tempos, que o holofote das recordações ilumina perscrutando nas brumas do passado. Sendo a memória a consciência inserida no tempo, não será mais do que as reflexões sobre a passagem do momento em que existiram e entre os efeitos que provoca nas pessoas conta-se a nostalgia, que nos põe a olhar para trás.
Vejamos as ruínas de monumentos que são fragmentos de espaços e de acontecimentos, restos de épocas e de locais onde apenas habitam recordações, quais fantasmas guardando a história, que se desenha no horizonte de mistérios, algures perdido entre o sonho e a fantasia, entre a realidade e a lenda, entre a actualidade e os tempos antigos.
Do mesmo modo, a inclemência do tempo e as suas consequências, tanto físicas como psicológicas, faz com que os nostálgicos sejam consumidos pelo vazio existencial, quase desvinculados da dinâmica do mundo, entregam-se a um sobreviver umbroso, deixando-se escorrer para uma espécie de afunilamento, qual ciclo inacabado ou a terminar.
Todavia, actualmente é tão grande a importância do tempo, ao ponto de se dizer que “o homem é escravo do relógio”, essa máquina que controla todos os passos das nossas vivências. Para tanto ele pode fragmentar-se, perder o carácter de evidência ou de energia, multiplicar-se, relativizar-se e mesmo tornar-se num caos, com tendência a transformar-se num mar negro da inconcebível intemporalidade.
Acresce que o tempo é, também, um dos “imperativos categóricos” do conhecimento a que nenhuma sociedade se pode subtrair. O homem sempre tentou controlá-lo e dominá-lo, ora ocultando-o (passado) para fazer dele uma dimensão escondida do social, ora ultrapassando-o prospectivamente (futuro) para melhor o gerir (presente).
Depois de introduzir, com ousadia e irreverência, o corte transcendental na essência contínua da duração do tempo, a modernidade privilegia o presente, renuncia o passado e fica prisioneira de um futuro sempre incerto. Muito embora seja objecto de múltiplas estratégias para o reduzir a forma da temporalidade reconhecida e dominada, o tempo auto-impõe-se como (Deus) árbitro e juiz de todas as coisas, de todos os acontecimentos e de todos os humanos.
Assim, a história, a ciência e a cultura dos povos revelam que o tempo - sempre novo e igual a si próprio – sobrepõe-se a todas as tentativas de instrumentalização, movimentando-se inexoravelmente em direcção ao desconhecido.
(A Nação n.º 336, 06 a 12 de Fevereiro de 2014)
[1] Entrevista a José Mattoso, conduzida por António Marujo, in Expresso/Actual, 29-04-2012.
[2] Daniel Medina - “Consciência do Tempo e a Realidade”, in A NAÇÃO, de 5 a 11-01-2012.