Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
“Um ofício que fosse de intensidade e calma
e de um fulgor feliz
E que durasse com a densidade ardente e contemporânea
de quem está no elemento aceso
E é a estatura da água num corpo de alegria
E que fosse fundo o fervor do ser a metamorfose da matéria
que já não se separa da incessante busca
que se identifica com a concavidade originária”.
António Ramos Rosa (1924 – 2013)
“Um ofício que fosse da intensidade e calma” in Poemas Inéditos
Nas trepidantes semanas finais de cada ano, guiando fidelissimamente por parâmetros de avaliação considerados científicos e que são confiados à superior missão decretada por incontáveis folhas de Excel densamente preenchidas com tabelas, num processo para concluir os resultados dos passados doze meses, constroem-se balanços que por vezes acarretam desilusões.
Todavia, sem qualquer intuito de elaborar tais “balanços”, a recente criação da Academia Cabo-verdiana de Letras levou-nos a tentar um rápido olhar sobre a produção contemporânea de autores cabo-verdianos e constatamos que no período pós-Independência Nacional aumentou significativamente a publicação de livros abordando temas cabo-verdianos, o que é de certa forma gratificante.
Por certo, este facto não terá sido totalmente indiferente na motivação que conduziu à novel ACL, que tem “por objecto a promoção e o incentivo das Letras e da Literatura Cabo-verdianas e a difusão da Cultura Nacional”, bem como “incentivar, promover e difundir obras, estudos e ensaios relativos á criação literária cabo-verdiana”.
No entanto, dado ser bastante diversificado e um tanto disperso o conjunto de obras sobre temática cabo-verdiana, centraremos estes apontamentos no livro intitulado “Cabo Verde. 30 Anos de edições, 1975 – 2005”, que o Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro editou no âmbito das comemorações do 30º Aniversário da Independência Nacional, englobando não só autores cabo-verdianos, mas também estrangeiros que escreveram sobre Cabo Verde.
Considerado um catálogo enciclopédico de autores e obras publicadas ou editadas em prosa e poesia no período pós-Independência Nacional, agrega trabalhos nos domínios do histórico, do cultural, literário e social, do económico, do político e religioso, dados à estampa no período em referência.
Embora o livro não comporte uma recolha exaustiva, trata-se de uma amostra bastante representativa e que fornece uma ideia aproximada do conjunto das obras publicadas naquelas três décadas, constituindo-se num repositório que demonstra a competência destes artistas da pena e permite ao leitor viajar pelo mundo cabo-verdiano da escrita.
Face ao limitado espaço de que dispomos, escusamo-nos de debruçar sobre todo o conteúdo do excelente levantamento e no, caso vertente, cingir-nos-emos a uma breve passagem pelas produções ligadas ao campo literário integradas naquele registo.
Todavia, conquanto essencial para o apuramento do exercício da escrita, não faz parte dos nossos propósitos elaborar quaisquer comentários analíticos, nem tão pouco inferir juízos de valor direccionados a algum autor em especial, mas simplesmente alertar para e necessidade de recensões críticas, visto não lhes ser ainda dado o devido relevo nos órgãos da comunicação social cabo-verdiana.
Portanto, limitaremos a formular breves considerações incidindo sobre aspectos que se nos pareceram mais representativos numa panorâmica geral, tendo em conta que alguma distância temporal favorece reflexões mais cônscias na apreciação deste repositório, por facultar uma noção deste labor criativo em Cabo Verde.
Nessa contextualização, o valor literário de cada um dos textos em particular, o respectivo domínio da escrita e a excelência da criatividade não cabem nos propósitos destas anotações, pois neste percurso pela literatura cabo-verdiana o discernimento aconselha que nem todos os autores seleccionados devam ser integrados no conceito de “escritor”, na medida em que nem sempre a quantidade correspondeu à qualidade dos trabalhos publicados.
Por isso, convém realçar que grande percentagem destes textos resultaram de uma aturada elaboração no ofício da escrita, com a preocupação de apresentar obras bem conseguidas, sem polémicas fáceis nem questionamentos de vulgata, em que a argúcia na análise e o rasgo estilístico conduzem a uma prosa viva e numa narrativa escorreita.
Assim, ressalta à vista o profundo âmago dos “veteranos” em que questões de preferência pessoal nas múltiplas geografias ficcionais inventadas na respectiva criação literária, na qual destacam (p.e.) personagens que se instalam na imaginação dos leitores, chegando a parecer quase reais e bastas vezes marcam indelevelmente os estudiosos, situação que não se compadece com a ligeireza explanativa de muitos dos “novatos” nas lides da escritura. Como soe dizer-se, muitas criações precisavam de estar ainda mais algum tempo na gaveta para “amadurecerem”.
Sendo comum considerar Cabo Verde um país de poetas, porém, as publicações nesta área não superam a ficção. Contudo, a poesia é sempre uma questão de recepção, de polarização, transmissão de energia e, realmente, os poemas de alguns dos nossos autores determina de forma tão poderosa o contexto nacional, sobressaindo dos seus pares como a expressão do mundo cabo-verdiano, pois mostram-se empenhados na linguagem construtiva de uma possível ordem estilística com organização estética credível.
Acontece, também, que a poética de muitos dos “debutantes”(?) que integram a selecção ainda não se impõe, tanto no plano temático como no estilístico, visto se circunscrever a descrições que caracterizam uma poesia de “mera curiosidade”, atendendo que a sua qualidade literária oscila entre o narcisismo, o desencanto e o intimismo.
Embora saibamos que só muito raramente a poesia vive de pulsões geracionais, torna-se difícil ficar alheio a produções que revelam amargo desconforto ao se constatar a imaturidade de uns que nos confrontam com seus desabafos, enquanto outros se mostram empenhados em apenas se publicitarem como se “feira das vaidades” se tratasse. Percebe-se sem dificuldade se estar perante “iniciantes”, pois não faltam ecos de adolescente, transmitem displicência e algum desconsolo atendendo à fraca qualidade literária (e actualmente poucos têm paciência para ler vulgaridades).
Acresce constatar-se, principalmente na última década, que entre nós alguns “comentaristas” laboram com “pinças” e, porque detentores do acesso aos meios de “divulgação”, actuam no equívoco dos “compadrios”, no apoio dos pares e na cumplicidade política, clara “propaganda” que alimenta a vantagem de uns e condena outros ao ostracismo, ainda que aquilo que bastas vezes consideram “escrita criativa” não passa de relatos de pomposidades e eugenismos, que tentam ofuscar literatices embrulhadas numa sintaxe irregular e falsamente pós-moderna, monte de lugares-comuns onde revelam sentimentalismos repugnantes e pobreza de espírito, fazendo com que a destrinça entre literatura e literatice deixe de existir, numa mera encenação na tentativa de “entretenimento” (porque de cultural nada têm).
Neste contexto bons escritores cabo-verdianos têm sido injustamente esquecidos, enquanto escribas de inferior craveira literária colhem “reconhecimento”, amparados nomeadamente pela comunicação social, onde para tanto basta terem um “amigalhaço porreiro”.
Contudo, apesar dos breves reparos, conclui-se que o “balanço” do ofício da escrita literária contemporânea é francamente positivo, na medida em que, para além de a qualidade dos bons escritores constituir motivo de orgulho, a literatura de raiz cabo-verdiana é há muito internacionalmente conhecida, pois já nos meados do século passado constituiu tema para estudos, dissertações de mestrados e teses de doutoramentos em muitas e conceituadas universidades estrangeiras, representativa expressão da cultura que levou para bem longe o nome de Cabo Verde muito antes da expansão da nossa música tradicional.
(A Nação nº 330, 26 de Dez. a 01 de Jan. de 2014)