Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
"A solidão é a mãe da sabedoria" (Laurence Sterne)
“É a solidão que inspira os poetas, cria os artistas e anima o génio”
O famoso escritor colombiano e Prémio Nobel de Literatura de 1982, José Gabriel García Márquez faleceu no México, em Abril do ano corrente. Para além de normalmente terem muitas edições, os seus livros foram traduzidos em diversas línguas, de modo que a sua prosa continuará a ser apreciada por inúmeros leitores em todo o mundo.
Para este apontamento gostaríamos de citar uma das suas obras mais conhecidas, o livro “Cem Anos de Solidão” no qual, com a mestria de sempre, detalha obsessivamente a marcha do tempo, alongando-o ou encurtando-o, espaçando-o em datas, num diagrama rigorosa de palavras recortando as suas consequências materiais e sentimentais.
Conta a lenda que, para escrever aquele livro e por estar sem dinheiro, abandonou a sua actividade de jornalista e passou dezoito meses de privações, para se dedicar à sua feitura, mas publicado em 1987, vendeu oito mil exemplares numa semana. Foi traduzido em trinta e cinco línguas e já vendeu trinta milhões em todo o mundo.
O próprio exercício da escrita é um acto solitário, mas para além da aprofundada abordagem da solidão naquele seu livro, García Márquez também se debruçou sobre ela noutras obras, como será o caso de “Ninguém Escreve ao Coronel” expondo a solidão do poder. No fundo foi este o seu grande tema, explanando nomeadamente acerca da solidão da loucura e a solidão do amor. O próprio García Márquez sofreu a solidão que o aguardava no fim da vida, a solidão da incomunicação e da quase demência causada pela agora chamada Alzheimer.
Acontece que a “escola existencialista” vê a solidão como essência do ser humano. Cada pessoa vem ao mundo geralmente sozinha, atravessa-a como um ser em separado e, no final, morre só: “Nas duas grandes horas da Vida — a nascer e a morrer — o homem bebe sozinho o seu cálix. No trajecto entre os dois pólos, acobardado pela maior consciência da espessura da bruma, arregimenta amigos e companheiros. Mas a sua unidade é ele. Mesmo que consiga ter à volta a maior multidão — vai só.” (1)
Aceitar o facto, lidar com isso e aprender como direccionar nossas próprias vidas de forma satisfatória é a condição humana. Alguns pensadores, como Jean-Paul Sartre, acreditaram numa “solidão epistémica”, onde a mesma é parte fundamental por causa do paradoxo entre o desejo consciente do homem de encontrar um significado dentro do isolamento e do vazio do universo.
Porém, se na sua existência e crescimento o indivíduo começa um processo de separação ainda no nascimento, a partir do qual continua a ter uma independência crescente, muitos consideram que as pessoas precisam de se engajar activamente uns aos outros e formar o seu mundo na medida em que se comunicam e criam, sendo a solidão o sentimento de estar fora desse processo.
Logo, sentir solidão passa por uma situação de separação, que pode manifestar sentimentos de abandono, rejeição, insegurança, ansiedade, falta de esperança, inutilidade e insignificância. A solidão faz parte da vida, mas quando é muito intensa torna-se disfuncional e se tais sentimentos são prolongados tornam-se debilitantes e bloqueiam a capacidade de o indivíduo ter um estilo de vida saudável, levando à depressão. Ao mesmo tempo, a solidão pode constituir-se sintoma de um problema social ou psicológico, porque muitas pessoas passam por essa experiência com a perda de alguém significativo nos seus sentimentos, provocando um período de lamentação, no qual o indivíduo se sente só mesmo na presença de outros.
Embora existam diversas situações que conduzem a essa predisposição, visto normalmente a solidão consistir na condição de quem se acha ou se sente desacompanhado, sensação a partir da qual a pessoa experimenta uma sensação de vazio, também outras passam por momentos em que se encontram sozinhas não por força das circunstâncias mas por escolha própria.
Nestes casos estar só representa uma experiência positiva, prazerosa e traz alívio emocional, desde que esteja sob controlo, visto implicar uma decisão consciente. Sentir-se sozinho nesta configuração, pode constituir uma emoção saudável e a escolha de ficar sozinho durante um período de solitude pode ser enriquecedora.
Merece igualmente referência a solidão dos “não-lugares”, que acontece mesmo que se esteja rodeado de gente. Referindo-se a certos sítios urbanos ou interurbanos, o etnólogo francês Marc Augé escreveu num seu ensaio: “Se um lugar se define como sendo identitário, relacional ou histórico, então um espaço que não se pode definir como identitário, nem relacional, nem histórico será um não-lugar”. Ao contrário de outros espaços urbanos, um grande centro comercial, um aeroporto, uma auto-estrada não têm densidade nem memória. São locais de passagem, uma experiência massificada e efémera, uma necessidade de transporte, comércio ou lazer. Augé fala de uma espécie de “contrato de solidão” que existe nesses espaços vastos, nessas construções enormes onde coexistem a diversidade humana e a irredutibilidade individual.
Assim, numa outra vertente dos “não-lugares”, o recente filme “Prince Avalanche” do cineasta americano David Gordon Green, com Paul Rudd, Emile Hirsch e Lance LeGault, numa mescla de ficção e realidade, apresenta dois homens a pintarem as marcações de uma estrada e recolocando a sinalização vertical, algures no Texas (EUA). À sua volta a tragédia de uma floresta que a violência do incêndio pouco antes devastou. Reposto o asfalto, no isolamento de um caminho em que quase ninguém passa, eles trabalham. Pela estrada deserta, os dois lá vão cumprindo quilómetros sem chegar a lugar algum. Há uma permanência, uma pressão constante, qualquer coisa que está ali. É difuso e obscuro, não os larga de mistura com a angústia da insegurança. A solidão!
Acontece, também, a solidão não requerer a falta de outras pessoas, sendo sentida mesmo em lugares densamente ocupados e representar a falta de identificação/integração. Por isso a solidão parece se ter tornado particularmente prevalente nos tempos modernos e ocorre com frequência mesmo em urbes densamente populosas onde muitas pessoas experimentam a sensação de isoladas e deslocadas, principalmente quando oriundas de vivências quase comunitárias.
Acrescente-se, ainda, a rude solidão das prisões, isolamento quantas vezes acompanhado de tortura. Naquelas situações as múltiplas formas de suplício físico e psíquico tornam mais sombria a solidão, desencadeando emoções face ao “confronto” desigual entre carcereiros e presos, que pode levar ao desespero ou à ténue fronteira entre a vida e a morte.
Por norma, quando as pessoas se apercebem que a solidão é a sua companhia, o rosto entristece, a alma desvanece e um desconsolo invade o pensamento. Por isso, os sujeitos “sozinhos” apresentam maior número de sintomas depressivos e os estudos apontam para uma estreita ligação entre a depressão e uma redução da saúde física nas vítimas de solidão.
Contudo, a solidão é mais do que o sentimento de querer uma companhia ou querer realizar alguma actividade com outrem, a pessoa também se isola porque as suas sensibilidades precisam de algo: “Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas, é a isso que é preciso chegar" (2). Daí por vezes estar associado à solidão também o silêncio, que se torna significante no aprofundamento da mente, seja na condução para a criatividade seja contribuindo para a mortificação (os ascetas)
Portanto, as diversas facetas da solidão, constituem estados de espírito cujos significados dependem das circunstâncias e da própria pessoa que a encarna ou encara para alcançar determinados objectivos, levando a que uns a abominam e outros a cultivam voluntariamente.
Deste modo, apesar de por si não desencadear criatividade, a solidão influência a actividade artística potenciando notáveis expressões produtivas, visto constituir tema recorrente para a génese de diversificadas obras de arte, livros, filmes, músicas etc.
1 - Miguel Torga, in Diário – 1937.
2 - Rainer Rilke, in Carta a um Poeta.
(A Nação nº 356, de 26 de Junho a 02 de Julho de 2014)