Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
Fala-se com bastante insistência (e com alguma razão) na actual perda de valores, mas constata-se que, perante a tradicional lei do “mais fácil”, ninguém faz nada para a sua preservação e ao invés de debater assuntos com algum interesse cultural ou que tenham a ver com o bem comum, muitas pessoas acabam presas a uma participação limitada. Não faltam exemplos para ilustrar esta situação, pois depara-se com muita capacidade intelectual derramando esforços cerebrais para discutir assuntos socialmente banais (futebol, novelas, futilidades), que deixam a cidadania ou a moralidade de lado e falsificam o sentido útil da inteligência (Moral vr. Intelecto).
Acresce a forte tendência do “deixa andar” e aguardar que o “Pai-Estado” procure resolver os problemas, atitude que não será a mais recomendável no sentido de um assumido comportamento como verdadeiros cidadãos, com moral e intelecção suficientes para não permitir que o desinteresse ou o fanatismo (seja de que tipo for) obscureçam as mentes.
Derivada do latim mores (relativo aos costumes), a moral representa um conjunto de regras de conduta no convívio social, caracterizadas pelas imposições e proibições que cada pessoa coloca a si mesma em relação às suas decisões e atitudes. Actua na liberdade dos indivíduos levando-os a pensar sobre as consequências de seus actos (oposições bem vr. mal, justo vr. injusto). Embora seja aplicada sobre o próprio sujeito, não cabendo a este se cuidar com o decoro do próximo, o “moralista” busca impor as formas de como agir, obstaculizando o direito de cada pessoa seguir a sua própria maneira de ser e comportar.
Enquanto o intelectual (detentor do saber) utiliza as suas capacidades para estudar, meditar ou especular acerca do mundo e das ideias, de modo a que o seu uso possua relevância social e colectiva. Daí a intelectualidade basear-se na lógica e serve o desenvolvimento do raciocínio, da análise e da criatividade (tenha-se presente que o homem é ao mesmo tempo criatura e criador), levando a mente à adquisição de mais conhecimentos sobre os prodígios e as realidades da vida. Devido à sua acção reflexiva, é portador de uma autoridade científica quando se expressa e normalmente estabelece relações com a sociedade através de um certo status que o coloca em situação de certo descomprometimento intelectivo, visto as suas ideias e proposições estarem (por princípio) desvinculadas de directrizes monopolizadoras.
Registe-se que “embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu em todas as sociedades, ao lado do poder económico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder económico, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra (o poder ideológico é extremamente dependente da natureza do homem como animal falante) ”. (1)
Porém, face às tendências da mundialização do conhecimento, observado como o saber amplo e generalista, as ideologias e as humanidades vêm sofrendo uma dêbacle frente às especialidades, ao saber técnico e prático, à indefinição política e às ciências aplicadas, levando alguns estudiosos a defenderem estar em curso o chamado "fim dos intelectuais".
Os argumentos usados para defender esse fim lembram muito os raciocínios de Francis Fukuyama no seu livro "O fim da História". Todavia, os que não alinham nesta perspectiva contrapõem com a existência do que chamam de fast-thinker (2), ou seja profissionais formados nas universidades que se importam mais com o “discurso” do que com a relevância do saber transmitido, demonstrando uma espécie de comprometimento com o “senso comum” ou até mesmo com opiniões de predeterminados “meios de comunicação”, visando agradar, fugindo ao engajamento que os definiria como “autênticos intelectuais” , na medida em que para Pierre Rosanvallon: "Intelectual é quem vincula um trabalho de análise a uma preocupação cidadã. De contrário, é um especialista".(3)
Contudo, sendo a moralidade uma elevação espiritual e a intelectualidade o desenvolvimento da mente, ambas são importantes para o correcto uso do discernimento. Por isso, intelecto e moral devem caminhar juntos na prática de actos em prol do progresso do homem em sociedade, viabilizando deste modo a sua possível interacção.
Acontece que antes os heróis e os grandes mestres eram ajuizados estando acima do humano comum e, como tal, possuíam virtudes e quase nenhuns defeitos. Eram também considerados detentores de propósitos éticos que espelhavam nas respectivas sociedades, pois cuidavam de tornar o ambiente social mais justo e agradável através das ideias e das artes, evidenciando concepções de saber, beleza, justiça e moral.
Talvez por isso, constata-se certa tendência para se exaltar os dons dos chamados “intelectuais”, abstraindo-se de quanto apresente contornos menos desejáveis e por vezes deixar mesmo cair no esquecimento aspectos pouco recomendáveis.
Todavia, embora a balança “Intelecto versus Moral” deva ser equilibrada, num dos seus irónicos escritos, Fernando Pessoa considera “Intelectualidade e Moralidade” incompatíveis: “Não há maior tragédia do que a igual intensidade, na mesma alma ou no mesmo homem, do sentimento intelectual e do sentimento moral. Para que um homem possa ser distintivamente e absolutamente moral, tem que ser um pouco estúpido. Para que um homem possa ser absolutamente intelectual, tem que ser um pouco imoral. Não sei que jogo ou ironia das coisas condena o homem à impossibilidade desta dualidade em grande”.(4)
De qualquer modo, ultrapassando aquelas considerações e apesar de nem sempre ser fácil diferenciar o homem da sua obra, alguns criadores de nomeada são apenas referidos com base nas suas produções, nunca se denunciando seus procedimentos menos abonatórios.
Não restam dúvidas que assim se passa com nomes grandes da literatura, mesmo que os seus comportamentos mereçam censura, como serão (por exemplo) os casos de V.S. Naipaul, Norman Mailer, Arthur Miller, na medida em que um forçou a amante a abortar, outro esfaqueou a mulher e o terceiro rejeitou o filho deficiente.
Nestes procedimentos problemáticos, Miller (autor de, entre outros livros, A Morte de Um Caixeiro Viajante) negou-se a aceitar Daniel que nasceu com Síndroma de Dawn e só quando este se tornou adulto começou a visitá-lo. Mailer (que casou quatro vezes) por seu lado esfaqueou a sua segunda mulher Adele (mas esta não apresentou queixa). E Naipaul (Nobel de Literatura - 2001) já descrito como crápula pelo ex-amigo Paul Théroux, admitiu ter perdido o interesse sexual pela mulher, recorrer a prostitutas mesmo casado e ter pago três abortos a uma amante antes de a abandonar.
Portanto, se a honestidade moral não é algo exclusivo dos “notáveis”, o mesmo se passa igualmente com o reverso da moeda. Daí a difícil escolha: o que mais importa, a criatividade ou a integridade moral?
Notas
1 -BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea, São Paulo, Editora UNESP, 1997.
2 - Expressão de Pierre BOURDIEU, in L'urgence et le fast-thinking.
3 - ROSANVALLON, historiador e professor do Collège de France.
4 - PESSOA, Fernando – “Barão de Teive” in A Educação do Estóico.
(A Nação nº 378, 27 de Novembro a 03 de Dezembro de 2014)