Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
O mito é uma narrativa de carácter simbólico, relacionada com aspectos de determinada cultura e geralmente procura explicar factos, fenómenos naturais ou as origens do mundo e do homem.
Detentores de um carácter simbólico, os mitos misturam prodígios da natureza e personagens sobrenaturais com acontecimentos reais, tentando esclarecer factos que a ciência ainda não tenha explicado. Também, é por vezes utilizado para aludir crendices sem fundamento objectivo e apenas vistos como estórias de um universo puramente maravilhoso. No entanto, até ocorrências históricas se podem transformar em mitos, ao adquirirem uma determinada carga simbólica para dado contexto social.
No entanto, mito e história eram conceitos normalmente considerados opostos, sendo o mito entendido pelos historiadores como uma “estória falseada”, enquanto encaravam a “narrativa histórica” como um discurso verdadeiro, visto abordar acontecimentos autênticos e “mostrar o que realmente aconteceu”, ao passo que o mito seria apenas “ uma tradição oral, uma fonte histórica, que é necessário criticar”(1), porque engloba uma série de questões e existem diversas interpretações para um mito específico.
Contudo, no século XX aconteceu uma nova relação entre mito e história, como ressaltou Le Goff e, a partir da Escola dos Analles, um diálogo a que Peter Burks se refere como dois aspectos: fonte histórica e fenómeno histórico. Nomeadamente através da Semiologia e da Antropologia Estrutural, surgiu então um olhar muito diferente do antes encarado pelas sociedades arcaicas e actualmente a separação analítica entre mito e história é aparente.
Deste modo os mitos têm servido de suporte para estudos em diversas áreas das Ciências Sociais e daí o interesse em se debruçar sobre alguns que de alguma maneira possam ser relacionados com Cabo Verde.
Assim, ao ocuparmo-nos desta temática, mostra-se necessário recuar aos primórdios das ilhas, visto estas se encontrarem envoltas numa série de parémias, que ao que parece não passam disto. Para tanto, tenha-se presente que a maioria os povos que entraram no povoamento do arquipélago seriam oriundos de sociedades quase agrafas e, como tal, propensas a criar mitos e lendas para justificar acontecimentos que não conseguiam fundamentar. Atente-se, ainda, que um dos obstáculos às inovações nasce dos bloqueios mentais causados por crenças, preconceitos e percepções não comprovadas, que fazem parte dos imaginários fortemente inibidores do progresso.
Assim, no contexto da primeira fase da expansão marítima portuguesa, começaremos por recordar o mito do “Cabo Não” (situado na costa atlântica do noroeste de África, ao sul de Marrocos), então considerado inultrapassável com base em estórias fantasiosas acerca da existência de ferozes criaturas bizarras e redemoinhos gigantescos naquela região, do que originou o seu antigo nome. Por isso, os navegadores do Século XV respeitavam-no como o “non plus ultra”, além do qual a navegação seria impossível: “Quem passar o Cabo Não tornará ou não”, escreveu Alvise Cadamosto.
Mais tarde denominaram-no “Cabo dos Medos”, devido à sua difícil passagem por causa de correntes marítimas, de junto à costa haver muitos baixios e dos frequentes ventos fortes, que aliados à neblina proveniente das poeiras do deserto, causavam elevado número de naufrágios, dando lugar ao medo que os mareantes tinham de seus barcos afundarem naquela zona.
Porém, com o início das descobertas passou a ser chamado Cabo Bojador e depois de tentativas fracassadas foi ultrapassado, pela primeira vez em 1433 por Gil Eanes, tornando-se um marco importante ao derrubar velhos mitos medievais. Daí ter escrito Fernando Pessoa:
“Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor”.
Portanto, navios de exploração enviados pelo Infante D. Henrique viajaram para além do Cabo Bojador (na altura o limite do mundo), tornando acessível o Oceano Atlântico aos marinheiros da época e abrindo caminho para que, utilizando as técnicas de navegação no “mar alto”, alcançassem Cabo Verde.
Quanto a um possível conhecimento da existência do arquipélago, referências de Al-Idrisi aludem a aventureiros árabes cujas viagens lhes permitiram obter informações acerca das Ilhas Atlânticas, que depois registaram em vetustas cartas. Encontram-se também menções que poderão corresponder ao arquipélago cabo-verdiano nos trabalhos do geógrafo ibero Pompinius Mela (que viveu no tempo do imperador romano Claudius), o qual as denominou ilhas caóticas de “Gorgade”, em alusão às míticas irmãs gregas mortas por Perseus. Um outro informe deve-se ao romano Pliny (o Idoso, que faleceu em 79 dC), cujas teorias localizavam as “Gorgades” a dois dias de “Hespero Ceras”, correspondente ao actual cabo Verde, situado na costa ocidental do Senegal.
Outrossim, quase todos os povos possuem o seu “mito das origens” e na circunstância de Cabo Verde tal poderá ocorrer no imaginário simbólico, na medida em que algumas correntes atribuem a origem mítica do arquipélago a textos de Platão – Timeu e Crítias em especial, que recupera a misteriosa Atlântida, numa lenda narrada em diálogos escritos por volta de 350 aC, acerca de uma conversa que se terá passado entre Sócrates e seus discípulos em Atenas (421 aC), conjugando-a com o do Jardim da Hespérides.
Nesses textos Platão conta que, aquando da viagem de Sólon ao Egipto, conversando com sacerdotes, um deles lhe falou de tradições antigas respeitantes a uma guerra outrora sustentada por Atenas contra os Atlantes, povo que habitava ilhas situadas defronte da Coluna de Hércules, à saída do Mediterrâneo, quando se entra no Atlântico.
Resumidamente, descreve que na altura em que os deuses partilharam entre si a Terra, Atenas passara a pertencer a Atena, a deusa guerreira e a Hefesto, deus do fogo, enquanto a Atlântida ficara sob o domínio de Posídon, deus que reina nos mares. Na Atlântida vivia Clito, donzela de quem ele se enamorou e passaram a residir na montanha central da mesma. Dessa união nasceram cinco pares de gémeos, tendo depois Posídon dividido o território em dez partes, uma para cada um dos descendentes. Tratava-se de uma região muito rica, tanto do ponto de vista natural como também detentora de muitos recursos minerais, com destaque para o metal raro oricalco, cujos reflexos lembravam o fogo.
Platão informa, ainda, que os Atlantes teriam procurado dominar o mundo inteiro, mas foram vencidos pelos Atenienses. Pouco mais acrescenta sobre a Atlântida que, segundo o mesmo, foi devastada por um cataclismo – castigo de Zeus – e engolida pelas águas do Atlântico, ficando apenas os cumes das montanhas, que corresponderão aos arquipélagos localizados na parte central desse Oceano.
O imaginário retomou este mito do “paraíso perdido”, ao considerar os “fragmentos” emersos como as “Ilhas Afortunadas” que integram a região da Macaronésia, vocábulo que deriva do grego Makaron, (com o significado de feliz).
Entroncado neste contexto está o mito hesperitano ou arsinário, que uma vez mais vai beber na cultura grega, ao retomar a lenda das Hespérides, território onde existiria o “Jardim dos Deuses” ou “Jardim das Hespérides”, que por sua vez serviu de inspiração a poetas cabo-verdianos (Pré-Claridosos) como José Lopes e Pedro Cardoso nalgumas das suas produções.
Afamado pelos seus deliciosos frutos e onde também existiam maçãs de ouro, possuía um clima ameno, atributos que fizeram com que fosse identificado com o Paraíso e motivo porque era guardado por Lódon, dragão de cem cabeças.
Entretanto, no âmbito dos “Doze trabalhos de Hércules” se insere a lenda segundo a qual uma dessas tarefas era justamente estar incumbido por Euristeu de roubar maçãs de ouro às Hespérides. Para tanto persuadiu Atlas (que conhecia Lódon) a ir ao jardim roubar três maçãs de ouro, enquanto ele se incumbiria de suportar o céu no seu lugar e efectivamente Atlas conseguiu matar Lódon e retirar as maçãs.
Este facto está também presente no imaginário cabo-verdiano, pois o sangue derramado por Lódon espalhou-se pelo Jardim da Hespérides, dele nascendo o Dragoeiro (Dracaena draco), cuja seiva é conhecida nalgumas ilhas por “sangue do dragão” e árvore que está em extinção, mas que encontrou no arquipélago o seu habitat natural onde se reproduz espontaneamente, mesmo sítios quase inacessíveis. Saliente-se, a propósito, que uma das mais altas condecorações do Estado de Cabo Verde é precisamente a “Ordem do Dragoeiro”.
Igualmente, a chamada “Política do Sigilo” terá contribuído para alimentar mitos relacionados com estas ilhas, na medida em que, iniciados os descobrimentos e antes de consolidar as suas explorações marítimas, Portugal enfrentou a oposição da Espanha que não aceitava como certos os direitos de sozinho explorar a Costa da Guiné. Para impedir que a Espanha prejudicasse seus intentos, Portugal lança mão duma política que proibia qualquer cidadão português ou a seu serviço, sob pena de morte, de fornecer mapas, ensinar a interpretar as cartas de marear, ou facultar quaisquer informações que ajudassem a construir naus ou caravelas no estrangeiro. Daí que e como consequência do terramoto de 1755 que arrasou Lisboa devastando os Arquivos Reais, para além de escassas, muitas informações daqueles documentos não serão fiáveis, porque eram elaborados de forma a confundir concorrentes da Coroa.
Assim, no que concerne ao achamento de Cabo Verde, subsistem dúvidas relativamente aos descobridores de algumas das ilhas, visto não haver consenso acerca de quem primeiramente as visitou, sendo apontados vários nomes, e os investigadores ainda não chegaram a acordo relativamente às diversas teses apresentadas. De igual modo não está assente a verdadeira data em que os navegadores portugueses aportaram a cada uma delas.
Acresce que a nebulosidade dos mitos também paira sobre a ocupação humana das ilhas. Relatos da época informam que “nem mesmo acharam rasto de gente”(2). Um outro testemunho assegura similarmente que “não só não viram gente, como debalde procuraram caminhos e outros sinais da presença de homem”, acrescentando “que ao depois vieram a descobrir, eram todas desabitadas, não se encontrando nelas senão pombos e infinitas aves de espécie estranha e grande pescaria de peixe”(3).
Porém, o facto de as ilhas terem sido encontradas desabitadas, não implica que fossem totalmente desconhecidas em tempos recuados, nem afasta a hipótese da estadia de outros povos, ainda que sem fixação efectiva.
Tanto assim que Oliveira Marques considera que “viagens de árabes ou de negros enquadrados na zona cultural muçulmana parece terem alcançado a ilha do Sal, no arquipélago de Cabo Verde, que visitaram com regularidade durante algum tempo a fim de carregarem sal”(4).
Ainda no que concerne à possível anterior estadia de gentes no arquipélago, alguns historiadores admitem que frágeis embarcações de povos da costa africana atingiram o arquipélago, arrastadas pelas brisas e correntes marítimas (Sirva de exemplo recentemente terem arribado ao arquipélago emigrantes da costa defronte em barcos frustres).
Neste sentido um texto anónimo, datado de 1784, contém a seguinte passagem: “Esta ilha se achou já habitada de muitos homens pretos, que por tradição se dizia ter procedido de um rei Jalofo, que por causa de uma sublevação, tinha fugido do seu país com toda a sua família a buscar refúgio, em uma canoa, na costa do continente, mas porque foi acometido de uma veemente tempestade (…) o ímpeto dos ventos fez aportar a canoa nesta ilha, que fica a oeste do mesmo cabo Verde”(5).
Analogamente, escritos de António Pusich (1810), João da Silva Feijó (1813) e Chelmicki & Varnhagem (1841), apresentam alusões muito semelhantes relativamente ao povoamento das ilhas antes da chegada dos europeus. Contudo, atente-se que o Anónimo escreveu “por tradição”, Pusich registou “segundo tradição antiga”, Feijó informa “ali tradicionalmente consta” e Chelmicki anotou “há tradição”. Portanto, para além de nenhum deles ter fornecido fontes credíveis, António Carreira afirma que “naqueles tempos todos copiavam uns dos outros sem qualquer receio de acusados de plágio”(6).
No entanto, Lopes de Lima (1844) rejeitou aquelas teses nestes termos: “Não passa de ser uma fábula pouco engenhosa essa tradição (itálico nosso) vaga e infundada, que alguns escritores, sem crítica nos têm transmitido à toa, de que a ilha de S. Tiago, ao descobrir-se era já povoada de negros Jalofos, que ali passaram perseguidos pelos Felupes seus vizinhos e lançados pelas brisas e correntes de Oeste”(7).
Como não abundam registos credíveis sobre os primeiros tempos destas ilhas, um conjunto de informações sem a necessária comprovação e apenas alimentadas pelo rico imaginário da tradição oral, têm conduzido a especulações várias por parte dos menos avisados. No âmbito de referências a inscrições rupestres, estará o caso da “Rotcha Scribida” (topónimo que serviu de tema para uma das mais conseguidas mornas características daquela ilha) no vale da Ribeira Prata, S. Nicolau (Há quem diga que originalmente o nome daquele local seria Ribeira dos Piratas e não Ribeira da Prata, que a tradição diz resultar do reflexo do sol nas suas águas). Mais concretamente as pretensas “inscrições” nela “apostas” e sempre presentes no imaginário sanicolaense, são apresentadas como testemunho deixado por antigos habitantes. Porém, as mesmas foram consideradas por Bacelar Babiano, que as examinou e fotografou, como sendo um mero fenómeno natural, assim descrito: “Por vezes as camadas de tufos, por efeito da pressão exercida pelos terrenos que as cobrem, fendem-se e, quando os lapili se lhe sobrepõe directamente, os elementos que o constituem introduzem-se nestas fendas produzindo incrustações de formas muito curiosas que fazem lembrar letras de inscrições antigas”(8).
Com o mesmo intuito, fazem alusão às inscrições existentes na Janela, Santo Antão, como tendo sido insculpidas antes da chegada dos europeus, possivelmente por piratas. Efectivamente, na face voltada para o mar da “Pedra do Letreiro” sita na embocadura da Ribeira do Penedo, encontra-se gravada uma frase encimada por uma cruz. Embora ainda não se ter cuidado em providenciar estudos epigráficos com vista à datação desse letreiro rupestre em que, apesar de bastante corroído pelo tempo e encoberto pelo vandalismo, conseguem-se decifrar a palavra “Diogo”(?) e à frente as letras PTO, que podem corresponder a “Pinto”(ou a siglas de “Cristo”), acrescidas de “António a fez” (em português numa caligrafia semelhante à de muitos documentos antigos), para além de a cruz (símbolo do cristianismo) só ter chegado à África com os europeus.
Estando a referida pedra muito próxima do ancoradouro da Janela, levanta-se a hipótese de alguém falecido a bordo de alguma embarcação ali aportada, tenha sido enterrado naquele local (haja em vista a cruz que a remata), ou então um possível testemunho deixado pelos primeiros ocupantes europeus da ilha.
Conquanto muito citados, estamos em crer que estes elementos (curiosamente ambos na região de Barlavento que só foi povoada numa segunda fase) não constituem testemunhos líticos comprovativos da possível presença ou quiçá estadia de pessoas em Cabo Verde antes do povoamento.
Contudo, o desconhecimento de fontes documentais ou outros elementos probatórios seguros e a inexistência de vestígios denunciadores de anterior permanência de gentes no arquipélago, conjugados com a falta de estudos arqueológicos criteriosamente conduzidos e que possam atestar a presença efectiva de habitantes antes da chegada dos europeus, levam a que tais hipóteses sejam encaradas como simples mitos, pelo menos até serem cientificamente comprovadas.
Notas
1 - VEINE, Paul – Acreditavam os gregos nos seus mitos?, São Paulo, Editora Brasiliense, 1983.
2 - COSTA, Fontoura da – Cartas das Ilhas de Cabo Verde por Valentim Fernandes, Lisboa, AGU, 1938.
3 - RIBEIRO, Orlando – “Primórdios da Ocupação das Ilhas de Cabo Verde” in Aspectos e Problemas da Expansão Portuguesa, Lisboa, JIU, 1962.
4 - MARQUES, A. H. Oliveira – História de Portugal, 6ª ed., Lisboa, Palas Editores, 1986.
5 - ANÓNIMO – Notícia corográfica e cronológica do Bispado de Cabo Verde (…), Apresentação e notas de CARREIRA, António, Lisboa, Praia, ICL, 1965.
6 - Ensaio e memórias económicas sobre as Ilhas de Cabo Verde, por João da Silva Feijó, apresentação e notas de António Carreira, Lisboa, Autor, 1986.
7 - LIMA, Lopes de – Ensaio sobre a Estatística das Possessões Portuguesas, Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1844.
8 - BABIANO, Bacelar – “A Geologia do Arquipélago de Cabo Verde” in Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal, Tomo XVIII, Lisboa 1932.
(A NAÇÃO nº 296, Praia, 02 a 08-05-2013)