Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
Nos últimos tempos têm sido apresentados em Cabo Verde alguns documentários etnográficos, nomeadamente através dos Centros Culturais e de Cine Clubes, como também já foram elaborados significativo número de textos etnográficos, através de trabalhos académicos, facto que nos permite esta abordagem comparativa.
A prática etnológica nasce quase sempre duma interacção da visão do observador e do observado, da “fusão de horizontes” como defendia Gadamer, Assim, qualquer trabalho de pesquisa neste campo tem quase sempre dois “autores antropológicos” e é sempre uma experiência partilhada.
No mesmo sentido, afirma Maurice Godelier que “a antropologia deve combinar uma análise emic (análise das representações dos actores nativos) com uma análise etic (análise das representações “científicas” dos observadores)[1]. Por sua vez, considera José Dias: “O objectivo da antropologia não é para mim, a construção de um conhecimento geral das relações sociais humanas, nem a tradução da cultura dos outros para a nossa. Será antes um negociar entre pontos de vista diferentes, criticá-los e reelaborá-los, para ampliar as possibilidades de discurso inteligível entre universos de significação diferente, que se querem diferentes, mas que, num mundo como o nosso, com uma rede interminável de conexões, se entrecruzam cada vez mais”([2]).
Portanto, estamos constantemente implicados nessas construções socioculturais e a ideia de um investigador “invisível” é praticamente utópica, uma vez que a sua presença já constitui, por si só, uma intervenção. Por maior que seja a empatia, nunca deixa de ser visto como estranho pela comunidade
Não esqueçamos, também, que em qualquer trabalho deste âmbito não descrevemos somente o que os outros pensam ou fazem, incluímos também o que nós pensamos, na medida em que existe o ponto de vista pessoal, para além de a completa isenção ser praticamente impossível por mais que se acautele.
Tanto mais que “uma investigação é, por definição, algo que se procura. È um caminhar para um melhor conhecimento e deve ser aceite como tal, com todas as hesitações, os desvios e as incertezas que isto implica” ([3]).
Acresce que “los riesgos merecen la pena, porque correrlos conduce a una concienzuda revisión de nuestra comprensión de lo que significa abrir (um poco) la consciencia de un grupo a (parte de) la forma de vida de outro, y por esta via a (parte de) la suya propria”([4]).
Obviamente que tudo isto torna presente o risco do “esteticismo”, a ideia de que tanto os etnólogos como o seu público poderem crer que o valor que tem escrever se esgota em si mesmo, no prazer do texto, ou seja, o risco de tornar a etnologia numa “disciplina” literária.
O texto etnográfico, e a investigação a ele inerente, é pois uma forma de representação social e cultural. Daí que “a interpretação simbólica não é uma descodificação, mas uma improvisação que se apoia sobre um conhecimento implícito e obedece a regras inconscientes”(5). O trabalho de investigação reproduz experiências que englobam significados e entendimentos culturais que operam no mundo actual. Podemos, assim, entender a etnografia como a apreensão da “vida” que se desenvolve em determinado espaço.
Convém, entretanto, salientar outro aspecto – a análise narrativa. Esta implica a recolha de estórias ou outras descrições (tradição oral), que serão, posteriormente, sujeitas a uma análise paradigmática, usando conceitos derivados quer de teorias pré-existentes, quer de materiais derivados desses relatos. Tal significa que a etnografia como “contadora de estórias” tem uma grande importância, embora se acrescente que tais reconstruções são facultativamente e ficcionalmente correntes. Igualmente a subjectividade do “outro” é separada da objectividade inerente ao texto etnográfico. Será sempre alegórico, um escrito simbólico, não se tratando simplesmente de uma recolha de experiencias vividas por determinada comunidade. Trata-se de algo intermédio entre o texto de ficção e o texto de “laboratório”. Ciência e literatura interpenetram-se e a escritura de descrições sociais torna-se tanto experimental como ética.
Alguns autores defendem que estes novos métodos etnográficos podem conduzir a uma crise. Para Loreba: “Progress will come from confronting the tradicional social scientific opus with new problems, and modifying the former correspondingly.
I took anthropopogy to be, literally, the unified science of man, bringing together the social and the biological, the evolucionary and the contemporany, the Self and the Other”.(6)
Saliente-se, contudo, que a relação entre o texto etnográfico e o filme etnográfico é muito próxima, na medida em que ambos são meios de divulgação de conhecimentos no campo antropológico. No entanto, parece incontestável que muitas pessoas se sintam mais capacitadas para analisar a sua própria imagem do que às interpretações abstractas num papel. Com esta afirmação não se nega que a imagem não possua uma vertente abstracta, mas detém um efeito imediato (empírico) que existe na própria representação visual.
Em qualquer caso, deve ficar bem claro (desde o princípio) se desejamos realizar um produto audiovisual compreensível e independente em si mesmo, ou se o objectivo é introduzir a câmara como uma ferramenta de observação e análise no conjunto da investigação.
No contexto do filme etnográfico “bem-sucedido” citaremos, a título exemplificativo, o caso do Jean Rouch, cineasta que utilizou a câmara como símbolo da escrita etnográfica, pois descobriu uma nova forma de contar as estórias, mudando com ela o curso do cinema, ao libertá-la dos constrangimentos narrativos, técnicos, teóricos e até éticos.
Tomou a imaginação como limite e o seu cinema vive do confronto com o paradoxo, com a ambiguidade, com a bizarria e o inexplicável, e é uma obra aberta entre a realidade e o sonho. Por isso os etnólogos viam-no como cineasta, enquanto o mundo do cinema lhe chamava etnólogo.
Rouch produziu mais de cem filmes (na maioria curtas metragens), mas nunca se abdicou do chamado cinéma-vérité, com efeito baseado na transparência da realidade e na expressão natural dos actores, porque foi sempre um ilusionista do cinematógrafo, aberto á fantasia, à provocação, ao humor, aos mistérios do ciclo da vida e da morte.
Relativamente à África, mais concretamente, fixou ao pormenor diversos grupos étnicos, agricultores, pastores, pescadores, seus quotidianos, cenas de caça, rituais, cenas de possessão, macumbas, circuncisões, sacrifícios tribais, actividades de adivinhos, poções mágicas, cultos aos espíritos dos antepassados e estados de transe, nos quais não se notam quaisquer influências/interferências da câmara. Fugindo ao academismo, a tudo isso acrescentou como elemento fulcral a voz off (a do próprio Rouch) com que conduzia as imagens de uma forma cativante e afectiva, quimérica, capaz de espelhar a acção das mesmas sem as comentar.
Com a marca indelével de Rouch surgiu o arranque de uma nova era, permeável a outro regime de “maquinação” e de representação, pois se tornaria essencial no cinema moderno, que levantava voo com inédita textura e nunca mais a palavra “documentário” dormiria sono descansado.
Logicamente que tudo isto coloca, tal como na escrita etnográfica, questões sobre o olhar do “eu” e o olhar do “outro”, matérias acerca de fronteiras que de certa maneira se encontram na base da Antropologia, mas que parecem perder um certo sentido através destas abordagens. Nomeadamente porque ao falar-se de “Filme Etnográfico” entra também um terceiro olhar – o olhar do público, da pessoa que ao ver as imagens irá fazer a sua própria leitura dos acontecimentos. A documentação visual detém um grande poder de sedução, a realidade e a representação são vistas lado a lado, não são tidas como dois elementos separados. As imagens guardam muito do momento em que foram tomadas, mas não o suficiente face á realidade do próprio meio. É o investigador que tem de controlar e, sobretudo, apresentar esse “texto” como produto a uma audiência que não teve a experiencia do respectivo autor.
Refira-se, talqualmente, que Elisenda A. Piera tentou desenvolver uma metodologia de filmagem que se integrasse na dinâmica observada, a que chamou “Filmagem Etnográfica Explorativa”.
Partindo da ideia de uma câmara viva que se submerge no campo de investigação e se adapta ao mesmo tempo. A sua intensão era gravar o comportamento num estilo de filmagem “natural”, ou seja, adaptada ao contexto e ao método da observação-participante. Por comportamento “natural” entende aquela autora, a circunstância em que “an ethnography must contain the following elements: (I) the major focus of an ethnographic must be a description of a whole culture or some definable unit of culture; (II) an ethnographic work must be informed by an implicit or explicit theory of culture which causes the statements within the ethnography to be ordered in a particular way; (III) an ethnographic work must contain statements which reveal the methodology of the author; and (IV) an ethnographic work must employ a distinctive lexicon - an anthropological argot”(7).
A problemática da investigação “activa” ou “passiva” mostra-se diferente se se assiste a um comportamento tecnicamente problemático, porque ao reconhecer-se que a presença da câmara em si é um incentivo para um “acontecimento”, então se está claramente implicado, sendo necessária uma atenção á ambiguidade das imagens e das possíveis repostas da audiência. Aconselha-se então a contextualização “precisa” das imagens/conteúdos.
Um dos métodos de contextualização é ter presente que as representações que vemos são parciais e restringem-se á perspectiva do realizador. Convém, similarmente, pensar que um realizador, tal como um escritor, não mantém o controlo total sobre o modo com as imagens ou palavras ser recebidas pelo público. Por vezes, a visão que um espectador retira de um filme pode mesmo ser oposta à mensagem pretendida pelo próprio realizador do filme.
No essencial os filmes, um pouco como os livros, são construídos de modo a permitirem várias leituras e análises interpretativas, aspecto que os enriquece sobremaneira.
(A Nação nº 304, de 27 de Junho a 3 de Julho de 2013)
Notas
[1] GODELIER, Maurice - “Espelho meu, Espelho meu… O papel da antropologia no passado e no futuro: uma avaliação provisória”, in Ler História nº 23, Lisboa, Fim de Século, 1993, pp, 106, 107.
[2] DIAS, José António B. Fernandes - “Comentários a João de Pina Cabral. Os contextos da antropologia” in Analise Social, Vol. XXVI (114), Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1991.
[3] QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, Luc Vam, - Manual de Investigação em Ciências Sociais, Lisboa, Gradiva, 1992, p. 29.
[4] GEERTZ, Clifford - El Antropologo como Autor, Barcelona, Paidos Studio, 1989.
5 SPERBER, Dan – O Simbolismo em Geral, São Paulo, Cultrix, 1968.p. 10.
6 LOREBA, Josep R. – “Reconstructing Anthropology”, in Después de Malinowski, Tenerife, ACA, 1993.
7 RUBY, Jay – “Is an Ethnographic Film Ethnography?”, in Studies in the Anthropology of visual Communication, Vol. 2, Number 2, Fall, 1975, p.107.