Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
“E os que depois de nós vierem, vejam
Quanto se trabalhou em seu proveito,
Porque eles para os outros assim sejam.”
António Ferreira (1)
Viver sem conhecer a respectiva História constitui um fluir privado de sentido para o povo cujo destino flutua numa lacuna do tempo sem identidade.
No entanto, a História visa o Homem e a vida deste se desenvolve normalmente nos pequenos espaços, na medida em que é neles que ela se inscreve e se realiza, integrada em comunidades que são simultaneamente resultado e fautoras do mundo habitado.
Assim, tirando as mega-aglomerações das grandes urbes, o conhecimento da Hist6ria Local é indispensável para a construção de uma confiável História Nacional, visto interpretar com mais fidelidade as realidades, as aspirações e os quotidianos das populações, ajudando a explicar o sentido profundo das culturas e os comportamentos dos grupos.
Porém, numa perspectiva redutora, alguns “estudiosos” consideram que a História Local não é suficientemente importante para se impor no panorama da historiografia geral, como se a árvore não interessasse à floresta.
Felizmente este prisma vem se alterando e já são as próprias Universidades a criarem cursos e seminários integrados em Mestrados que debruçam sobre a História Local. Como esta actualização é inovadora nas temáticas, fontes e metodologias, tem aberto novos caminhos e perspectivas de pesquisa que fazem avançar o conhecimento histórico.
Também, como reacção aos efeitos da globalização, cresce o interesse pela História Local, principalmente por parte dos países pequenos, ao se darem conta de que para se manterem credores do respeito na senda das nações têm de agarrar ao garante da sua especificidade, ou seja o reconhecimento internacional da respectiva cultura e identidade.
Outra circunstância que joga a favor da valorização da História Local advém do desenvolvimento da indústria turística, tendo em conta a atenção que dedica à valorização dos patrimónios e acontecimentos retidos na memória das gentes, seus usos, costumes, tradições, sincretismos, músicas, etc., por constituírem sustentos de muito interesse para o Turismo Cultural.
Realce-se, ainda, que a História Geral de um país não consegue descer aos pormenores que são próprios da História Local, a qual, em princípio, também não aspira a síntese analítica que caracteriza a ambição daqueles estudos, pois aproxima-se dos quotidianos, busca atingir o entendimento das realidades, ser capaz de perceber os sujeitos no seu ambiente e captar as suas vivências, para interpretar correctamente os sentimentos de um povo.
Acontece que desde Senna Barcellos, passando por António Carreira até à História Geral de Cabo Verde, os pouco mais de cinco séculos e meio da historiografia do arquipélago têm sido investigados no âmbito global, apesar de se poderem considerar alguns (parcos) trabalhos académicos focalizados em campos específicos como tentativas isoladas apontando possíveis contributos para Histórias Locais.
Deste modo, centrando naquilo a que poderemos denominar a “Pequena-Grande História do Povo das Ilhas” e partindo da circunstância que, devido à insularidade, às difíceis ligações/comunicações na altura do seu povoamento e dos diversos grupos humanos que primeiramente as ocuparam, a evolução sociocultural de cada um dos espaços teve percursos diferentes, mostrando-se aconselhável debruçar sobre as respectivas especificidades.
Igualmente fala-se muito das identidades regionais, mas convém ter presente que não há sentimento de pertença sem o cabal conhecimento dos agentes que a suportam, concedendo mais sentido à História Local. Por isso, no caso de Cabo Verde será certamente no âmbito dos estudos “ilha a ilha” que se construirá a narrativa dos acontecimentos que no conjunto formatarão a História Nacional.
Dado que a Nação é um todo feito de partes, nem sempre iguais, ao restaurar a história das comunidades e do seu território, se desenvolve a consciência cívica e a necessidade de interacção, na medida em que se detectam e valorizam aspectos comuns que, por essa via, diminuem possíveis incompatibilidades, porque a compreensão de urna matriz idêntica afasta bairrismos fanáticos.
No entanto, face à diversidade das possíveis abordagens em consonância com as trajectórias das ilhas/regiões, a investigação apresenta-se complexa, exigindo que se percorram arquivos, bibliotecas, museus, etc., ou seja todos os locais onde as prováveis informações se encontrem preservadas.
Portanto, a construção da História Local necessita agregar elementos oriundos de diversas fontes, com vista à melhor equação dos “espaços em branco / silêncios da história”, tendo em conta as intenções mais profundas de muita documentação disponível.
Daí que, perante a conhecida escassez de registos, a tradição oral poderá ser um importante auxiliar no sentido de colmatar lacunas na elaboração da nossa História Local. Fazer a narrativa de um espaço implica recuperar reminiscências e vestígios disseminados pela área onde as sociedades se inscrevem, porque no seio das mesmas existem componentes que os documentos não facultam e é preciso intuir para perceber a base de determinadas ocorrências e vivências.
Neste caso, o recurso à memória dos anciãos mostra-se útil, porque logrará auxiliar a esclarecer aspectos do campo a estudar, visto constituir um importante repositório de informações (cada idoso é uma biblioteca) que pode vir a não estar disponível se a recolha não for feita atempadamente.
Todavia, os relatos do passado estão sempre em mutação: recordamos apenas partes, interpretamos e remodelamos, por causa do esquecimento, da imaginação e da emoção/identificação. Por isso esta memória será o que ficou retido e não o que pode ter mesmo acontecido, visto ser difícil ir para trás e encontrar tudo tal como terá ocorrido. Também, é sabido que “quem conta um conto acrescenta um ponto”, motivo porque o rio da estória por vezes troca as voltas ao seu leito.
“O anjo da história avança de costas voltadas para o futuro e o seu rosto, virado para o passado, olha um vento de ruínas quo o impele” – diz com razão Walter Benjamin. Similarmente, num país onde as memórias desaparecem como o vento, devido às actuais tendências e desafectos do dito “modernismo”, tentar salvaguardar a história a partir das estórias/recordações, para além de tarefa difícil, não faltarão diferentes versões para os mesmos acontecimentos.
Na prática, a questão das fontes para a História Local constitui um problema que não é fácil de tornear, face ao contingente, ao relativo e ao particular das explicações globais. Daí que, se abundantes, as diversas variantes obrigam o estabelecimento de critérios de selecção, para depois de coerentemente comparadas, “filtrar” possíveis “acrescentos” que muitas vezes surgem ao sabor das circunstâncias.
Tal pressuposto exige discernimento, lucidez e uma boa dose de espírito crítico para escolher os melhores materiais com vista aos objectives pretendidos. Tanto mais que “tentar só uma interpretação historicamente mais correcta é uma questão de interesse académico; o importante de uma grande obra é tentar perceber o que ela pode dizer no nosso tempo, em qualquer tempo.”(2)
Assim, dado que Cabo Verde já possui um bom escol de especialistas no campo dos estudos históricos, estão criadas as condições mínimas para a implementação de projectos de investigação direccionados para a História Local, cujo conhecimento é imprescindível para a construção da verdadeira História Nacional.
1 - António Ferreira (Poeta quinhentista, in Castro)
2 - Nikolaus Harmoncourt, in Público- Mil Folhas, 15 – 06 – 2002.
(A Nação nº 387, de 29 de Janeiro a 05 de Fevereiro de 2015)