Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
ALMANACH LUSO-AFRICANO

No passado mês de Dezembro foi apresentado na Praia, mais concretamente no anfiteatro do campus da Universidade de Cabo Verde no Palmarejo, uma reedição faccimilada do Almanach Luso-Africano. Temos notícia da existência de apenas cerca de meia dúzia de exemplares originais no mundo inteiro, facto que justificou a oportunidade de tornar acessível aos estudiosos e ao público em geral as suas valências documental como facto histórico-cultural e monumental como representação literária.
Trata-se de uma publicação com a chancela da reconhecida Editora Almedina, concretizada, em 2012, a partir de um projecto sobre a cultura cabo-verdiana implementado pelo Centro de Estudos Africanos, da Universidade de Lisboa, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia, de Portugal.

Refira-se, a propósito, que saíram apenas dois números do referido almanaque, ou seja as edições correspondentes aos anos de 1895 e 1899. Tinha a sua redacção na ilha de S. Nicolau, mas era impresso em Braga, talvez por influências de um dos seus dirigentes, o Cónego Oliveira Bouças, que era natural daquela cidade nortenha de Portugal.

No entanto, a direcção e a dinâmica do Almanach Luso-Africano deveram-se à força empreendedora do Cónego Costa Teixeira, cabo-verdiano multifacetado, devido ao desempenho de diversificadas actividades.

Filho de Manuel da Costa e de Maria Francisca Teixeira Costa, António Manuel da Costa Teixeira nasceu, em 1865, na ilha de Santo Antão, vindo a falecer a 15 de Março de 1919, no Mindelo. Apesar de sacerdote católico teve vários filhos, como na época era comum em Cabo Verde.

Entrou para o Seminário-Liceu de S. Nicolau em 1880 (com 15 anos), tendo-se ordenado subdiácono em 1889. Um ano depois passou a sacerdote e no mesmo ano ascendeu a presbítero, sendo então colocado na Boa Vista, onde permaneceu até 1895.

Nessa altura regressou a S. Nicolau onde exerceu as funções de perfeito e de professor do Seminário-Liceu, para além de capitular da Sé Catedral e pároco da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário na mesma ilha. No âmbito da actividade docente, destacou-se como exímio professor de música.

Todavia, o Cónego Costa Teixeira sempre fomentou o gosto pela leitura, procurando deste modo complementar a modesta instrução dos cabo-verdianos em geral, ao mesmo tempo que procurava afirmar a sua consciência identitária.

Por isso, demonstrando grande interesse pela difusão do ensino, durante a sua estadia na Boa Vista fundou naquela ilha a Associação Escolar Esperança, em 1894, com o objectivo de desenvolver a instrução e a educação em geral.

Registe-se que O Cónego Teixeira elegeu como uma das suas missões combater o analfabetismo, da mesma maneira como lhe era caro o estudo da psicologia infantil, cujos princípios aplicou na Cartilha que, na linha da sua vocação pedagógica, elaborou com vista a melhorar a qualidade do ensino em Cabo Verde.

Tendo sido um dos pioneiros no estudo da língua cabo-verdiana, o Cónego Costa Teixeira sempre defendeu o ensino bilingue (crioulo e português). Para além de outros escritos sobre o crioulo de Cabo Verde, exemplifica este seu interesse a publicação, na Revista Portuguesa – Colonial e Marítima, de uma tradução na variante de Santo Antão, do Canto de Os Lusíadas referente à chegada dos portugueses a Cabo Verde. Neste contexto, comenta Baltasar Lopes que Teixeira possuía uma “autêntica vocação de linguista e foi um dos pioneiros do estudo do crioulo, a quem só fez míngua a falta uma preparação filológica”.

Face à sua preocupação com o estudo da língua cabo-verdiana, Costa Teixeira correspondia-se com o renomado filólogo Leite de Vasconcelos no intuito de melhorar os seus conhecimentos nesse campo e, nas duas cartas a que tivemos acesso, a conversa girava á volta da forma como devia processar-se a ortografia do crioulo e o esclarecimento de dúvidas acerca de outros aspectos linguísticos.

Para além da sua actividade sacerdotal, O Cónego Teixeira empenhou-se na escrita, tendo colaborado em publicações como Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro e O Ultramarino (de que era correspondente), onde manteve várias polémicas, nomeadamente com Aurélio Martins ou ainda com Augusto Miranda.
Acresce que aquele sacerdote pretendia divulgar não só Cabo Verde e a sua cultura, como também dar a conhecer trabalhos de cabo-verdianos além-fronteiras. Assim, no intento de concretizar tal objectivo, o Cónego Costa Teixeira publicou, em 1895, o Almanach Luso-Africano, no qual chegou a promover um concurso literário destinado a todos os que se interessassem pela composição literária, portanto, não se circunscrevendo aos mais letrados.

A iniciativa se revelou um enorme sucesso a avaliar pelas congratulações e citações encomiásticas dos leitores (principalmente estrangeiros) transcritas no Almanach Luso-Africado de 1899. Todavia, não impediram a interrupção dessa publicação por motivos que dá a entender num pequeno texto intitulado “Morreu o Luso- Africano”.
Relativamente aos respectivos repertórios, enquanto empreendimento inerente ao género almanaque, para o qual se presume uma cadência em regime de anuidade, o Almanach Luso-Africano viveu certa efemeridade, dada a publicação de apenas dois tomos, mesmo assim saídos com um intervalo de quatro anos. Também, ao arrepio de uma planificação homogénea, os dois números são desiguais em extensão, na medida em que o segundo tem, praticamente, o dobro de páginas comparativamente ao primeiro volume. No entanto, é de supor que o crescimento do segundo volume em número de páginas resultou da boa aceitação do projecto, com o aumento de colaboradores e, consequentemente, a ampliação dos vários tópicos.

Ainda no concernente ao conteúdo do Almanach Luso-Africano, o “Cartão de Apresentação” (primeiro volume) traça as coordenadas do cometimento e determina o objectivo de “difundir e fazer propagar a instrução prática”, sob a divisa “instruir, educar e recrear”. Para a prossecução do lema proposto, estão divididos em duas partes: a primeira consagrada à “Agenda” e a segunda apresentada como “Miscelânea”, integrando diversa índole do saber (de âmbito enciclopédico).

Seguindo os cânones desse estilo de publicações, a primeira parte (“Agenda”) incluía uma secção formal de auto-referência (apresentação, expediente e burocracia), outro segmento incorpora a prática-informativa (impostos, serviços postais, transportes, astronomia, festividades religiosas e profanas, matéria eclesiástica, tabelas, medidas e legislação) e uma outra fracção correspondente á colaboração no Almanaque.

É em função dos pressupostos “instruir e/ou informar”, “educar e/ou prescrever” e “recrear e/ou exercitar a imaginação”, que deveremos entender a segunda parte (“Miscelânea”) em atenção à pluralidade de géneros que encerra.
Porém, tendo presente o “espaço-tempo cultural” cabo-verdiano da altura, a inspiração da escrita desenvolve-se em função da tradição, no contexto da arte expressiva, na manifestação lúdica e no exercício da mestria do saber/conhecimento. Daí que a matéria dos dois Almanachs agregue os requisitos do estilo poético, literário, musical, iconográfico, dramático, narrativo, humorístico-anedótico e cifra (charadas, enigmas, acrósticos, anagramas, logogrifos, salto-de-cavalo).

No sector “Formação” (p.e.) acentua-se o conteúdo informal e a generalidade dos textos parece orientar-se para a esfera da subjectividade e edificação do leitor, excepção feita no item “Intelectual” que tem no ponto geral de aplicação um campo epistemológico.
Relativamente à “língua/linguagem” se expõe, com o empenhamento do Cónego Teixeira, o interesse pela ideia precursora do bilinguismo protagonizado pelo português e pelo crioulo, que deste modo se exercitava na escrita, visando a sua valorização como língua vernácula de autenticação matricial.
Quanto aos géneros incluídos no “lúdico”, as temáticas parecem traduzir a espiritualidade e a veia parodiante do crioulo, importando sublinhar que o essencial pertence ao domínio da individualização autoral, quer na movimentação que o anima, quer no estilo que elege.
A secção “Instruir, Educar, Recrear” põe em evidência um nível de intelectualidade que pelo adestramento revela ser dotada de elevado engenho e gosto apurado, como demonstra a alta fasquia de diversos textos. Notório o paradigma do ponto de vista oficinal, pelo que esclarece sobre o conceito de escrita e o trabalho que ela implica como sinalética do amadurecimento, neste caso conotadora do sistema civilizacional-cultural que se instaura sobre o registo da oralidade e um ícone da maturidade da caboverdianidade.

Convém destacar que, interrompida a publicação do Almanaque Luso-Africano, complementarmente o Cónego Teixeira fez sair a Esperança, em 1901, como suplemento literário do mesmo (editada de colaboração com o Cónego Oliveira Bouças), o qual surgiu em consequência do elevado número de artigos que tinham sido entregues e que não puderam ser integrados nos possíveis números seguintes. Aquela revista mensal “consagrada, em especial à Juventude Colonial e Professorado Primário de Portugal e do Brasil” foi editada regularmente durante um ano.
Mas, acontece que o Cónego Teixeira entrou em contacto com o “Espiritismo” através dos livros católicos que o combatiam, acabando por ingressar no Racionalismo Cristão, participando no “Centro Espírita Caridade e Amor”, nos inícios de 1911, e passando a colaborar no jornal A Tribuna de linha “Kardecista”. Em virtude dessa actividade paralela ao sacerdócio, viria a ser excomungado pelo Papa Pio X, em 1912.

Para sobreviver, fundou o Colégio Esperança, no Mindelo em 1914, instituição “particular portuguesa, de educação e ensino neutro, com internato”, por se considerar um organismo apartidário.
Contudo, perseguido pela Igreja Católica que actuou junto dos poderes instituídos, aquele colégio foi encerado, vindo o Cónego Costa Teixeira a morrer com 54 anos de idade, por inanição como consta da respectiva Certidão de Óbito.

(A Nação n.º 281, 17 de Janeiro de 2013)