Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
O LIVRO DIGITAL

Numa breve retrospectiva histórica, a escrita foi inventada por volta de quatro mil anos antes da nossa era, os hieróglifos egípcios têm apenas menos 800 anos e a escrita alfabética chegou por volta do ano mil. Porém, no século II d.C. surge o códex, ou seja o livro composto por páginas que substituiu o rolo e o aparecimento da tipografia, em 1450, conduziu ao livro praticamente na forma em que ainda hoje perdura.

     As razões da perenidade deste aparelho extraordinário encontram-se, certamente, na sua capacidade de armazenar muitas informações em pouco espaço, arruma-se e transporta-se facilmente, apresenta-se em dimensões diversas e formatos manuseáveis e a matéria de que é feito tem enorme capacidade de preservação, desde que conservado em condições adequadas.

     Entretanto, até se tornar o que é hoje, o livro sofreu transformações no sistema de suporte físico - tábuas de argila, papiro, pergaminho, mas o seu valor intrínseco se perpetua através dos séculos, ou seja transmitir a informação e o conhecimento.

     Porém, a criação do livro em suporte digital alterou bastante o método de leitura, porque as pessoas deixaram de ler da mesma forma como o faziam num passado recente. Para tanto, consideramos  livro digitallivro electrónico, e-book qualquer conteúdo de informação que pode ser lido em equipamentos ou dispositivos como computadores, e-readers, tablets, etc. 

     A leitura neste sistema distribuiu-se por vários suportes: livros, revistas e jornais electrónicos, publicidade televisiva, anúncios luminosos e outras invasões do texto no espaço urbano e pessoal, realçando-se os “browsers” da rede e as hiperligações.

     Assim, da mesma maneira como a tipografia mudou radicalmente o mundo há quinhentos anos, facilitando o acesso aos livros por parte de vários sectores da população, dando início à fixação de várias línguas e criando condições para o aparecimento de editores, autores e livrarias, as novas tecnologias afectaram profundamente o seu formato (livro) e o consumo (leitura), pelo que com a migração para o formato digital a tendência caminhará para a diminuição dos acervos físicos.

     Por isso, vive-se um período de grandes transformações no que diz respeito a esta via de acesso à informação/conhecimento, pois até há pouco tempo tal exercício se restringia aos livros e outros suportes que atendiam uma determinada comunidade de usuários, mas os avanços tecnológicos disseminaram a comunicação, atingindo um público maior e distribuindo-se por espaços diversos.

     A sociedade actual exige cada vez mais acesso à informação, de modo que o digital assume um lugar de destaque, principalmente junto dos jovens e, no geral, as pessoas aderem rapidamente às novas técnicas, devido às facilidades propiciadas pela internet e ao barateamento dos dispositivos electrónicos que caíram no gosto dos consumidores, aumentando o saber disponibilizado e gerando o fenómeno chamado de desintermediação.

     Acontece, no entanto, que os livros em suporte digital não cumpriram o percurso “triunfal” augurado com a sua entrada em cena, o que tem a ver com resistências racionalmente elaboradas em função de hábitos, intuições e vícios incrustados no leitor pela longa utilização do livro impresso.

     Quando se passa para o livro electrónico, transpõe-se para outro tipo de representações, diferente das interpretações mentais e de operações intelectuais distintas das que o livro tradicional apresenta há dezoito séculos. Ocorre ao mesmo tempo uma revolução na leitura, porque ler num ecrã não é o mesmo que ler no códex, além de a exposição electrónica modificar totalmente a materialidade do livro e dar lugar à imaterialidade do texto sem lugar próprio.

     No entanto, para além do desconforto que o brilho do ecrã produz, retira o prazer da textura do papel, de apreciar as encadernações, não consegue proporcionar a disposição sensorial de folhear as páginas, escutar o ruído do seu atrito, manusear, sublinhar, anotar nas margens e até afecta o olfacto, visto o livro ter cheirinho de novo, de velho…    

     Constituem, contudo, atavismos próprios dos que se habituaram ao livro impresso e não contaminam quem se iniciou e cresceu com os computadores, contrariamente às resistências ainda não superadas pelos apaixonados por livros impressos, pois dizem não haver nada que se compare a poder sentir a sua textura, ter um autógrafo do autor e as relações de contiguidade impostas pela técnica da sucessão das páginas impressas opõem-se à livre composição fragmentária que o digital convida.

     Também o ecrã não se mostra ainda apto para uma demorada leitura contínua e linear, aspecto que levou o próprio Bill Gates, presidente da Microsoft, a afirmar: “A leitura no ecrã é ainda muito inferior à leitura no papel. Mesmo eu, que tenho ecrãs de alta qualidade e me vejo como pioneiro do modo de vida Internet, assim que um texto ultrapassa quatro ou cinco páginas, imprimo-o e gosto de o ter comigo e de o anotar. É uma verdadeira dificuldade para a tecnologia chegar a este grau de comodidade”.

     De qualquer maneira se está perante mudanças de paradigmas sem precedentes, porque as estruturas tradicionais da informação foram abaladas com o livro digital e como as tecnologias informacionais estão cada vez mais presentes no nosso dia-a-dia é provável que a comunicação impressa, tal como a conhecemos hoje, tenha de se adequar de modo a satisfazer as necessidades da sociedade na era digital.

     Daí que, embora os dois processos ainda sejam complementares na disseminação do saber/informação, a escolha por um ou outro vai depender do próprio usuário. Esta, talvez, uma das razões porque, apesar de o mercado do livro estar cada vez mais complexo, Markus Dohle, do gigante mundial de edições comerciais, o grupo Penguin Rondom House, cuja “estratégia se baseia na ideia de que o livro impresso será sempre importante”, afirmou na Feira do Livro de Frankfurt, em 2013: “Não fiquem preocupados. O livro impresso vai ser um negócio importante nos próximos cem anos”. Acrescentando: “O nosso grupo vai continuar a investir no papel. Enquanto os outros fogem do impresso, nós investimos nele”.

     Constata-se, entretanto, que cada uma das configurações tem suas vantagens e desvantagens, não permitindo considerar uma melhor que a outra, sem levar em conta o interesse do respectivo leitor. Assim, os custos envolvidos na produção do digital são menores que o livro tradicional por dispensar gastos com editor, impressão e frete, outros dos benefícios advêm de se encontrar numa configuração transmissível pela internet, facilitando o compartilhamento de informações, pode ser comprado em qualquer hora e local do mundo e colabora com o meio ambiente, visto evitar cortes de árvores para a fabricação de papel. Igualmente, a forma de armazenamento como estávamos acostumados (estantes, bibliotecas) sofreu modificações, porque uma “biblioteca digital” cabe numa pasta.

     Acompanhando o progresso, as edições em suporte digital já chegaram a Cabo Verde. Para além dos jornais on line e dos blogs, cite-se a título exemplificativo a Revista de Estudos Cabo-verdianos, da Universidade de Cabo Verde, referente a 2012 e a 2013, bem como um número especial dedicado à temática “Património e Museologia” (todos de acesso gratuito) ou o recente livro de Abraão Vicente, intitulado Amar 100medo, Cartas Improváveis & Outras Letras, disponível para venda no E-book. Colocado em versão digital de forma gratuita para as primeiras cem pessoas que “descarregassem” o livro, o autor afirma que a oferta se esgotou rapidamente, o que constitui um indicativo interessante ou “pode mostrar interesse do público pelo livro”. Todavia, não forneceu o universo dessa amostra de leitores, que permitiria ter uma ideia da possível adesão dos cabo-verdianos a esta via de leitura. Também não se pode olvidar o facto de estes primeiros cem livros serem gratuitos incentivar o respectivo “download”, não correspondendo por certo à mesma procura paga num país onde “a literatura tem pouca saída comercial”.

      Acresce que, se nos reportarmos às muitas dificuldades que o cabo-verdiano ainda enfrenta no que concerne ao acesso às edições digitais, ampliado pelos fracos hábitos de leitura, estamos em crer que presentemente não será significativa a percentagem de leitores assíduos no suporte digital, se excluirmos as pesquisas que os estudantes apenas fazem com vista à elaboração dos seus trabalhos académicos.

(A Nação n.º 361, de 31 de Julho a 06 de Agosto de 2014)